NOVAS CONVERSAS COM COISOS - PRIMEIRO EPISÓDIO
Estúdio decorado com expressões escritas em vários tamanhos de Times New Roman. Salienta-se a expressão “Conversas com Coisos”, mas também “Debate Aceso” e “Diálogo Profícuo”. O tom predominante é o bege, com pequenos toques de verde e azul.
A mesa, em forma de boomerang, tem canecas personalizadas para cada interveniente, garrafas de água em cristal azul de design nacional (Siza Vieira) e pequenas pilhas de livros.
Ao centro senta-se Salvador Aflito, vestindo um pólo nas cores da decoração. À sua direita, Maria, depois Porcínio e, à extrema-direita, Guilherme. Na ponta, senta-se JM Trambolho. À esquerda do moderador, Alucinada, seguida por Barnabé e, na extrema-esquerda, Samuel.
Salvador (com um grande sorriso) — Muito boa noite e bem-vindos à nossa primeira Nova Conversa com Coisos. Ainda pensámos em chamar ao programa Eixo do Bem, mas havia questões de direitos de autor... (ri) Passo a apresentar o nosso painel residente.
À minha direita, a professora Maria da Castidade Perpétua, especialista em ensino básico e filha mais velha do famoso casal Perpétua, que tanto deu que falar há alguns anos.
Segue-se o deputado do Prontos!, Porcínio Galinha, e o Doutor Guilherme Riacho e Meio, historiador e investigador na área da história das mentalidades.
Na ponta encontra-se Julião Marco Trambolho, jornalista do Valor Nacional e comentador.
Do outro lado, a Doutora Alucinada da Pipoca Frita, presidenta da Associação de Famílias em Crescimento Contínuo e autora de vários livros — dos quais destaco o título Desperta, ó meu país! (Toda a verdade sobre as mentiras que ensinam aos nossos filhos).
Em seguida, temos o ilustre advogado e secretário-geral do Prontos!, o novo partido que conquistou os eleitores mais renitentes, Doutor Barnabé Desgraça.
Ao seu lado, Samuel Alfarrobeira, co-autor do podcast Dialécticas e Fracturas e jornalista com crónicas no semanário O Calhamaço.
Eu sou o Salvador Aflito e vamos então dar início à nossa conversa desta noite.
Para abrir o programa, escolhemos um assunto atualíssimo: a reforma da disciplina de Cidadania. Vamos fazer uma ronda rápida e começamos, como não podia deixar de ser, pelas senhoras.
Doutora Alucinada, a sua associação já tem uma posição a este respeito?
Alucinada (que veste saia e casaco verde-ervilha, uma blusa cor-de-rosa e vários colares de pérolas, de um dos quais pende uma cruz dourada; ajeita os óculos com aros cor-de-rosa) — Muito boa noite e muito obrigada pela oportunidade de contribuir para que a verdade venha, enfim, à tona.
Eu não sou propriamente Doutora — deixei a escola no sétimo ano e depois disso só estudei na escola da vida — mas, como é essa a escola em que mais e melhor se aprende, aceito o título.
Pois, a AFCC já se posicionou a respeito desta decisão que, em boa hora, o Governo tomou. Achamos muito bem que se acabe com a pouca-vergonha que ia por essas escolas, com exibições de filmes pornográficos uma vez por semana e leituras de porcarias indecentes escritas por esquerdistas sem Deus!
Pode acreditar, desde que vi uma série de vídeos no YouTube com crianças inocentes a brincar com um... um... ai, até tenho vergonha de dizer... um pénis, vá, em plástico verde... Ai, fiquei com o coração apertadinho! Já nem consigo entrar nos supermercados durante as campanhas do Regresso às Aulas, com medo do que vou encontrar na zona do material escolar!!! É uma imoralidade! E há estudos que comprovam que essas brincadeiras contribuem para que as crianças se tornem homossexuais, eu já li vários na internet!
Por isso, para mim foi um alívio quando soube que toda essa porcalhice ia ser retirada das escolas! Já apresentámos o nosso contributo, sugerindo a leitura semanal da Bíblia, porque as crianças precisam de ser educadas com mão firme — já lá diz o Antigo Testamento...
Samuel agita-se na cadeira e bebe um golo da sua caneca. Percebe-se que está mortinho por intervir.
Salvador — E passamos agora à Professora Maria da Castidade. Professora, diga-nos: qual é o sentir das escolas?
Maria — Boa noite. Portanto, nas escolas há muito tempo que se esperava por este passo. Esta questão da Cidadania é muito delicada, sobretudo com os alunos mais novos, porque as crianças não podem esperar ad aeternum por uma educação verdadeiramente espiritual.
Claro que eu sempre me recusei a pôr em prática essas sugestões indecentes que vinham, portanto, do Ministério no tempo do governo socialista — que Deus castigue!
Uma coisa é explicar às crianças que as meninas têm pipi e os meninos têm pilinha; outra coisa, portanto, completamente diferente e atentatória da inocência infantil, é mostrar filmes pornográficos! Est modus in rebus!
Samuel, impaciente, bebe mais um golo.
Trambolho limpa os óculos com um paninho especial com a bandeira nacional estampada.
Porcínio alça uma perna e solta um traque sonoro. Em seguida ri, bebe todo o conteúdo da sua caneca e limpa a boca à gravata.
Salvador (ainda com os olhos arregalados das manobras de Porcínio) — Doutor Barnabé, o Prontos! já tomou posição a este respeito?
Barnabé (olha diretamente para a câmara e pestaneja lentamente antes de começar) — Muito boa noite a todos. E sim, o Prontos! tem um comunicado a respeito deste assunto tão importante!
Nós sempre fomos contra a apologia do sexo desenfreado que se fazia nestas aulas, fruto, sem dúvida, da nefasta influência dessa estrangeirada herege que nos anda a invadir.Felizmente, agora, que o Prontos! é a segunda força política, já temos massa crítica para exercer alguma boa influência na governação!
Opróbio! Opróbio! essas aulas em que queriam ensinar as nossas crianças a usar preservativos e a tomar a pílula desde os seis anos! Opróbio!
Porcínio (entre dentes) — Micróbio! (Arrota)
Salvador — Gostava agora de dar a palavra à imprensa. Samuel, como aprecia estas opiniões?
Samuel (que veste t-shirt branca sob uma camisa de ganga) — Boa noite.
Bom, quero começar por desmontar as insinuações absurdas e completamente infundadas que aqui foram feitas sobre filmes pornográficos passados durante as aulas ou incentivo ao uso de contracetivos por crianças de seis anos.
Nenhuma dessas coisas corresponde à verdade. O Calhamaço fez vários inquéritos em escolas de todo o país, num protocolo com o Ministério da Educação, e pudemos verificar que a informação dada às crianças a respeito de sexualidade era perfeitamente adequada a cada faixa etária, e centrava-se sobretudo no conhecimento do próprio corpo e na definição dos limites entre o aceitável e o intrusivo nas relações.
Por outro lado, valorizava-se a aceitação da diferença e a inclusão de todos. E quanto ao vídeo que a S’Dona Alucinada diz que viu, eu também o vi, era um jogo em que se simulava uma ida ao supermercado e o suposto pénis era uma curgete de plástico. Talvez a S’Dona Alucinada devesse atualizar a graduação dos óculos...
É vergonhoso que pessoas como o Barnabé — que tem uma posição de destaque — ou as duas senhoras que já falaram, se prestem a espalhar inverdades! Bem dizia Rosa Luxemburgo “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. “
Levanta-se algum burburinho no estúdio, com Alucinada a resmungar de forma audível: “Ora essa! Então eu não vi no Facebook?!”, Maria a benzer-se, e Barnabé a dizer “Opróbio! Opróbio!”
Salvador pede calma, olha disfarçadamente para o relógio e acaba por levantar um pouco a voz:
Salvador (alto) — Vamos continuar, sim? Vá, com calma, por favor! (Retoma o tom de voz normal)
Porcínio, como deputado que veio das bases, qual lhe parece ser o sentir do homem e da mulher comum em relação a estas alterações ao programa da disciplina?
Porcínio (entalado numa gravata de riscas verdes e vermelhas, dá a impressão de ir explodir a qualquer momento) — Eu… pois eu… eu cá acho... acho que isto é só poucas-vergonhas! Olhe… isto é tudo… é dos imigrantes, são aos milhões por todo o lado, certezamente que é uma invasão…. Continuem a trazer essa gente!.... Vai ser lindo! Olhe…. Mictório! Mictório! (solta um arroto)
Salvador (completamente baralhado e sem ter percebido nada) — Sim, sim, percebo… Doutor Guilherme, gostava de ter agora a opinião da Academia. Como é vista no ensino superior esta questão da Cidadania e esta nova reforma?
Guilherme — A opinião da Academia, concretamente, não sei. Os meus colegas não costumam partilhar as suas opiniões comigo — talvez por causa da cor da minha pele!
Mas posso dizer-lhe que, na minha opinião, esta coisa da Cidadania é mais uma prova da intrínseca maldade da esquerda. Veja a tentativa de envenenar as mentes infantis com carradas de sexo. Sim, até manuais de masturbação e vales de desconto para caixas de preservativos andam a ser distribuídos nas escolas, pagos pelo contribuinte! Ora, diz Lavoisier que na natureza tudo se transforma, e é assim que a esquerda neste país quer transformar crianças inocentes e puras em pequenos monstros de depravação.
Ah, é bem verdade que o esquerdismo é uma doença mental!
Barnabé — Opróbio!
Porcínio — Micróbio!
Alucinada — Essa é que é uma grande verdade!
Maria (benzendo-se repetidamente) — Ave Maria, gratia plena…
Salvador olha em volta, como se pedisse ajuda. Desesperado, fecha os olhos e respira profundamente três vezes, antes de pedir, levantando a voz:
Salvador — Vamos com calma, sim? Com calma!
(Os convidados serenam um pouco, embora Porcínio continue a resmungar “Micróbio!” e Alucinada, debruçada sobre Guilherme, garanta que viu no YouTube crianças num infantário a brincar com preservativos coloridos cheios de água.)
Falta-nos só a voz, sempre sensata, de Julião Trambolho. Julião, o que se lhe oferece dizer a este respeito?
Julião (depois de pigarrear para aclarar a voz) — Eu sei que não costumam levar-me a sério, mas o que temos todos de lembrar é que é da escola que levamos a bagagem para a vida. Isto é essencial! Ora, pergunto eu, quantos entre os portugueses, sim quantos é que querem ver os seus filhos embarcar na vida com uma mala cheia de preservativos e filmes pornográficos?
Essa é que é essa! Essa é que é a pergunta que ninguém tem a coragem de fazer...
Barnabé — Opróbio!
Alucinada — Ai, eu não diria melhor!
Maria (de olhos arregalados) — E pluribus unum!
Porcínio — Antibiótico!
Trambolho sorri, vitorioso.
Samuel resmoneia, de maneira audível: “Mas que grande imbecil!”
Alucinada levanta-se para ir pedir um autógrafo a Trambolho e convidá-lo para dar uma palestra aos associados da AFCC.
Porcínio solta um traque particularmente sonoro e sai a correr à procura da casa de banho.
Barnabé, percebendo que está a ser filmado em grande plano, sorri e pestaneja.
Salvador, atarantado, pede calma, suplica, mas tudo é inútil, ninguém lhe liga. Alucinada e Trambolho trocam números de telefone e endereços de e-mail. De longe, chegam os urros e grunhidos de Porcínio, fechado na casa de banho. Barnabé precipita-se, todo sorridente, para ajudar Maria a levantar-se, e fica a conversar com ela, que parece encantada com a atenção. Samuel toma notas num bloco e consulta o telemóvel. Salvador respira fundo, faz mais uns apelos à calma que ninguém ouve — e acaba por assumir a derrota.
Salvador (contendo a custo as lágrimas) — E assim chegamos ao fim deste primeiro programa. Não era bem isto que ensaiámos..., mas foi o que conseguimos. Por hoje é tudo. Daqui para a frente... só pode melhorar. Esperemos. Só me resta desejar uma boa noite.
Até para a semana…
