NOVAS CONVERSAS COM COISOS - QUARTO EPISÓDIO
O cenário exibe a nova decoração de fundo, a nuvem de palavras, das quais se destacam, em letras maiores CONVERSAS e COISOS. O painel residente senta-se nos lugares habituais. Percebe-se que Barnabé acabou de chegar, pois está ainda a prender o microfone na lapela. Traz, por cima do polo Lacoste amarelo, um colete refletor em laranja, com o logotipo do Prontos!. Maria volta a trazer um vestido florido, desta vez em tons de rosa e verde, com uma gola de renda. Alucinada veste um vestido de riscas verticais em tons de azul e violeta, um colar nos mesmos tons e o cordão dos óculos é dourado. Julião e Samuel parecem ter combinado e estão ambos de t-shirt preta. Porcínio, quase estrangulado por uma gravata verde com cornucópias douradas, veste uma camisa branca. Guilherme traz uma camisa de linho com um galão bordado nas mangas e na gola e explica baixo a Alucinada que a camisa veio da Ucrânia. Na ponta da mesa oposta à de Julião Trambolho, senta-se uma convidada especial, uma mulher magra, de meia-idade e cabelo muito curto, cor de cenoura, vestindo uma blusa azul elétrico e um colar curto de grandes contas cor de laranja. Salvador veste a sua t-shirt turquesa com o logotipo do canal, que assenta de forma estranha já que ele traz um colar cervical, em consequência do encontro imediato que teve com uma cadeira no episódio anterior. Sobre a mesa, as canecas são diferentes, com uma base em silicone azul.
Salvador (parecendo bastante animado apesar do colar cervical) – Muito boa noite, senhores espetadores, dou-vos as boas-vindas a mais uma das Novas Conversas com Coisos. Temos o nosso painel habitual, a professora Maria da Castidade, o deputado Porcínio, o Doutor Guilherme e o Julião Trambolho deste lado, e do outro lado a Doutora Alucinada, o Barnabé, Samuel e a nossa convidada especial, Berta Fonseca e Tal, jornalista d’O Calhamaço e antiga diretora da Casa-Museu António Entidade. Seja muito bem-vinda, Berta! O nosso tema de hoje é candente: os incêndios que têm devastado a nossa floresta. Vou começar precisamente pela nossa convidada: Berta, como tem acompanhado esta catástrofe, estes fogos terríveis que já puseram em perigo várias aldeias e que já fizeram, infelizmente, vítimas mortais – a cujas famílias queremos desde já enviar sentidos pêsames?
Berta (reclinando-se na cadeira com um sorriso) – Sabe que tudo isto não me surpreende minimamente. Isto era uma tragédia anunciada, por décadas de políticas erradas na gestão florestal, por tricas e quezílias de pequenos proprietários, pela incúria dos sucessivos governos... Sabe que Lévi-Strauss já tinha descrito isto, na sua famosa frase: "O meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente". Sem a coragem e a dedicação dos bombeiros, teria sido ainda pior. Mas também aí falhamos! Quase não temos bombeiros profissionais, é em tudo a mesma miséria, a mesma falta de visão! (volta a sorrir)
Salvador – Barnabé, e do lado político? Acha que se pode responsabilizar o governo por este estado de coisas? Ou será que as culpas vêm um pouco de toda a parte, como diz a Berta?
Barnabé – Muito boa noite aos telespetadores e deixem-me pedir já desculpa por ter chegado tão em cima da hora, mas estive na missa, e daqui vou direto para a frente de incêndio de Labrulhos de Baixo, dar o meu apoio moral aos bravos guerreiros da paz! (dirige um sorriso à câmara) Eu peço desculpa à Berta por discordar assim dela, mas é evidente que a culpa é inteiramente do governo. Com o que choveu no inverno e na primavera, era previsível que o risco de incêndios fosse enorme assim que chegasse o calor! Desde o início do ano que o Prontos! Já apresentou três propostas no sentido de pôr os desempregados a vigiar as matas, os presos de delito comum a limpar as bermas das estradas e os imigrantes ilegais a apanhar, enfardar e armazenar o feno, salvaguardando-o para o inverno, e foram sempre recusadas pela coligação negativa da esquerda radical e pela abstenção da AD.
Berta (com um sorriso de troça) – Não diga disparates, Barnabé! Sabe perfeitamente que o país não tem os meios logísticos para isso! É uma medida impraticável...!
Samuel – Completamente impraticável e de utilidade nula! Além de que isso seria explorar pessoas em condição já muito fragilizada! O que é preciso é trabalhar com os proprietários em métodos de gestão equilibrada da floresta, menos eucalipto, menos pinheiro, mais plantas autóctones. Abertura de caminhos corta-fogo. Investir em meios aéreos próprios e eficazes, em vez de gastar todos os anos fortunas a alugar aviões que depois não chegam, ou avariam, ou não têm onde aterrar. Formação dos bombeiros para fogos florestais, de preferência com a colaboração de outros países com experiência neste tipo de incêndios...
Barnabé (gesticulando) – Ó Samuel, lá vem você com palavras caras e joguinhos de palavras para tentar confundir-nos! Vocês, da esquerda, quando ouvem falar em pôr as pessoas a trabalhar, é como quem vos fala no diabo! Já que os governos socialistas tiveram esta política de portas escancaradas, ao menos que essa gentuça sirva para alguma coisa além de receber subsídios e roubar os nossos empregos! Opróbio!
Porcínio – Pinóquio!
Salvador (aflito com o rumo que a conversa está a levar) – Quero pedir que evitem dialogar. Vamos lá com calma. Queria agora ouvir o Porcínio: você que contacta com a população no dia-a-dia, o que pensam as pessoas comuns, o homem da rua?
Porcínio (muito vermelho) – Olhe... Isto é assim, lá na padaria também tínhamos fogo, mas era para cozer o pão! (solta um pequeno, mas sonoro, arroto) Agora lá nas matas... pois, são os imigrantes! É essa gente que nos invadiu que pega o fogo às matas! Periscópio!
Maria (muito suavemente) – Ó senhor Porcínio, olhe que não! Vincit omnia veritas! Vi na televisão imigrantes a ajudarem, portanto, a apagar os fogos e a dar refeições e apoio aos bombeiros.
Samuel (triunfante) – Ora aí está!
Salvador – Professora Maria da Castidade, diga-nos: há alguma prevenção e educação para estes fenómenos nas escolas?
Maria – Portanto, há muitos conselhos que damos aos nossos alunos: se virem fumo ou labaredas não devem aproximar-se, mas chamar um adulto, nunca devem brincar com o fogo nem perto de fogueiras. Também os ensinamos a ligar para o 112, para dar o alarme se não houver adultos por perto. E todos os anos fazemos treinos de evacuação da escola.
Salvador – Tudo atitudes muito sensatas, vejo que os seus alunos estão bem entregues. E falam das alterações climáticas?
Guilherme – Isso é tudo propaganda da esquerda radical! Não há alterações climáticas, as flutuações de temperatura sempre existiram, são fenómenos naturais! Essa mentira das “alterações climáticas” foi criada pela política esquerdalha do chicote, para amedrontar as pessoas e prejudicar a economia! Tenho vários estudos de prestigiadas universidades americanas que provam que não há qualquer papel da atividade industrial no aquecimento global... que enfim, é muito esquisito, dado o frio que faz de vez em quando! (ri)
Alucinada – Era exatamente o que eu ia dizer! Não há aquecimento nenhum, nem alterações nenhumas, isso é propaganda comunista! Espero que a Mariazinha não ande a falar dessas mentiras aos seus alunos! Nós, na AFCC, temos um livrinho muito bem feito para as escolas, “A mentira das alterações climáticas”, hei-de mandar-lhe um caixote.
Berta (com o mesmo sorriso trocista) – Por amor de Deus! Que mentalidade medieval! Estávamos a falar dos incêndios, uma tragédia que se repete todos os verões, sem um fim à vista, que custa milhões em prejuízos materiais e vidas humanas e os senhores vêm negar as evidências científicas?! Há uma barreira de fogo a devorar-nos e história e a memória e os senhores preocupam-se que a apreensão com as alterações climáticas venha da esquerda?! Tenham vergonha!
Barnabé – Opróbio!
Porcínio – Antibiótico!
Salvador (tentando, mais uma vez, refrear os ânimos e recentrar o debate) – Julião, gostava que nos falasse um pouco da sua mais recente crónica no Valor Nacional, “Entre turismo e imigração, é a portugalidade que arde!”. Acha mesmo que tanto o turismo como a imigração têm peso nesta vaga de incêndios?
Julião – Correndo embora o risco de ser lido com um sorriso condescendente, eu insisto na minha tese. Repare que isto não são incêndios urbanos, as cidades não ardem. Ora é nas cidades que se concentram os turistas e os imigrantes. Os imigrantes que a professora Maria viu a ajudar, são os poucos que estão inseridos em pequenas comunidades rurais e claro que ajudaram, pois também eles, as suas casas e os seus parcos haveres estavam em perigo! Mas nas cidades, tudo isso é ignorado, e os turistas continuam a tirar fotografias às calçadas portuguesas, à ponte D. Luís e ao elevador de Santa Justa. E ninguém pensa que o que está a arder é o pequeno olival, as vinhazinhas, os pastos das ovelhas e das cabras, as árvores de fruto! É o queijo da serra, as alheiras de Mirandela, o vinho licoroso, a morcela de arroz da Beira! (com a voz embargada de emoção) É a portugalidade que arde! (furtivamente, limpa uma lágrima).
Berta (com desdém) – Ai, Julião! Que possidónio! As alheiras são de origem judaica, a morcela, cheia de cominhos, é extremamente indigesta, os vinhos licorosos da África do Sul são excelentes e qualquer queijo suíço bate aos pontos a queijo da serra! Que provinciano! Este país é uma miséria! Vocês não viajam, e depois é isto! Falta-vos mundo!
Samuel (com um sorriso de ironia) – Estamos então reduzidos ao pastel de nata?
Berta (com um gesto de desprezo) – O pastel de nata vem da tradição da doçaria oriental, a Bola de Berlim é alemã, os croquetes e os rissóis são franceses...
Barnabé (com gestos largos e tom de quem vai salvar a honra da pátria) – Ah, mas o pastel de bacalhau é nosso! Não serão as chamuças que que o vão destronar! Opróbio!
Porcínio – Velório!
Alucinada – Por sinal, eu tenho a receita dos pastéis de bacalhau da minha sogra, que é uma maravilha!
Porcínio – Até marchavam, uns pastéis de bacalhau com uma mini fresquinha! (arrota)
Salvador (temendo que o caos se instale) – Vamos lá com calma! Peço que não dialoguem, assim afastamo-nos do tema! Doutor Guilherme, embora não seja certamente no seu Departamento, qual tem sido o papel da Academia na prevenção dos incêndios?
Guilherme (com algum enfado) – Eu não costumo ligar muito a essa gente das engenharias, mas sim, têm trabalhado nessa coisa da gestão das florestas. Que, para mim, estão a fazer tudo mal! Para acabar com os incêndios de vez, era cortar as árvores todas, todas! Veja lá se no Sahara há incêndios? Não há!
Samuel (entre dentes) – Nem incêndios, nem nada! Pedra da calçada com olhos!
Berta (falando consigo mesma, em desespero) – Que falta de mundo! Que espíritos tacanhos! Nunca estiveram nas florestas do Bornéu, na Amazónia, no Vietnam, não saem da terrinha...
Salvador (parecendo muito surpreendido) – Ó doutor Guilherme, cortar as árvores todas não seria um bocado drástico?
Guilherme (muito assertivo) – Não acho! Olhe, acabava-se a porcaria das folhas secas no chão, que é uma bodega e escorrega imenso! Acabava-se com a praga dos pombos a cagar em toda a parte e com os pardais, que também não fazem falta nenhuma! E já viu o ganho, em lugares de estacionamento? E os acidentes que se evitavam?
Samuel (entre o furioso e o divertido) – Temos Ministro do Ambiente! Olhe, Barnabé, se alguma vez chegar a primeiro-ministro, lembre-se aqui do doutor Riacho e Meio!
Barnabé (com ar triunfante) – Não duvide, Samuel, que esse dia está próximo! Veremos se tem assim tanta vontade de rir nessa altura...
Guilherme (muito abespinhado) – Calculo que seja a cor da minha pele que o anima a fazer esses comentários falsamente jocosos.... Vocês, gente de esquerda, não enganam ninguém, perversos até à medula!
Samuel (sempre a sorrir) – Não ligo à cor da sua pele, só às enormidades que diz!
Alucinada (muito séria) – Eu vi no YouTube, num canal muito bom, que isto dos incêndios é provocado por uns espelhos gigantes que estão no espaço, mandados pelo Bill Gates e pelo George Soros para dominarem o mundo... Isto aflige-me tanto! Nem consigo dormir!
Berta (deitando as mãos à cabeça) – Ai, até sinto o meu QI a descer só de vos ouvir! Por isso é que este país está como está!
Salvador – Para fechar, gostava de pedir ao Samuel que se pronunciasse. Acha que estes incêndios estão mesmo a pôr em perigo a nossa cultura? Haverá forma de escapar a este desastre que todos os verões se abate sobre nós?
Samuel – Como já disse, isto passa muito pela gestão da floresta, de forma que seja rentável sem ser uma bomba-relógio, pronta a detonar a cada vaga de calor. Passa também pela luta contra as alterações climáticas, que sim, existem e estão aí. Se a nossa cultura está em perigo? Se está, não é por causa dos incêndios, embora eu perceba, até certo ponto, o que o Julião quer dizer. A menos que ali a Berta tenha encontrado um documento que prova que a sopa de beldroegas foi inventada por algum francês que se enganou a fazer uma vichyssoise, ou que o pão alentejano é afinal um cruzamento entre a pita e o brioche...
Ouvem-se risos abafados, um “Opróbio!” gritado por Barnabé e um “Micróbio!” gritado por Porcínio. Alucinada, falando muito depressa, tenta convencer Berta a ver uns vídeos do YouTube que ela garante que mostram fotografias dos espelhos gigantes. Berta olha em volta desesperada. Maria cumprimenta Julião pela sua crónica tão comovente e promete que vai lê-la na aula do 4º ano. Salvador respira fundo, animado pela relativa calma que reina naquele final do programa.
Salvador – Bom, hoje correu muito bem! Resta-me agradecer à Berta por ter estado no nosso programa, e, claro, ao nosso painel habitual. Para a semana, cá estaremos à mesma hora para mais um programa...
Neste momento, ouve-se um monumental arroto de Porcínio, que grita “Até que enfim! Estava aqui entalado desde o almoço!”
