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jigajoga

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26
Ago25

NOVAS CONVERSAS COM COISOS - TERCEIRO EPISÓDIO

Alface do Campo

O cenário sofreu algumas alterações depois do banho que levou na sessão anterior. A decoração de fundo é agora uma nuvem de palavras, das quais se destacam, em letras maiores CONVERSAS e COISOS. O painel residente senta-se nos lugares habituais.

Dado o calor que tem feito, Maria veste um vestido florido, em tons de rosa e verde, de mangas curtas e pequena gola branca bordada. Porcínio parece à beira de uma apoplexia, quase enforcado numa gravata azul às bolinhas brancas. Guilherme apresenta-se muito fresco, com uma camisa de linho azul, de manga curta. Barnabé, com um bronze impecável, veste um polo ADIDAS branco, com as clássicas risquinhas em vermelho e azul-marinho nas mangas e na gola. Alucinada traz uma blusa azul-celeste, arrendada, e os óculos, desta vez de aros azuis, pendurados ao pescoço num cordão de missangas vermelhas e brancas.

JM Trambolho e Samuel estão de t-shirt branca e até Salvador trocou o seu polo com o logotipo do programa por uma t-shirt azul-turquesa, também com um pequeno logotipo do canal. Sobre a mesa, além das canecas personalizadas e das garrafas de Siza Vieira, um grosso volume de O Capital, e uma pequena pilha de obras de economistas liberais – Mises, Hayek, Kirzner...

Salvador (parecendo muito animado) – Muito boa noite e bem-vindos, mais uma vez, a uma sessão das Novas Conversas com Coisos. Aqui, neste cenário renovado (dá uma gargalhadinha nervosa) depois do pequeno acidente da semana passada, acolhemos o nosso painel habitual: Professora Maria da Castidade Perpétua, deputado Porcínio Galinha, Doutor Guilherme Riacho e Meio, Doutora Alucinada da Pipoca Frita, Doutor Barnabé Desgraça e os jornalistas e comentadores Julião Marco Trambolho e Samuel Alfarrobeira. Eu sou o Salvador Aflito e o nosso tema de hoje é atualíssimo – a nova legislação laboral.

Vamos começar com os políticos, já que é da atividade do Governo que surge esta nova lei e é na Assembleia da República que ela tem de ser discutida e votada. Doutor Barnabé, o que pensa o Prontos! das alterações que o Governo quer introduzir na lei laboral?

Barnabé (olha diretamente para a câmara, pestaneja e sorri antes de começar a falar) – Em primeiro lugar, boa noite aos meus colegas de painel e a todos os portugueses que nos veem. O Prontos! concorda, na generalidade, com estas alterações. No entanto, há algumas que nos desagradam, por atacarem as famílias de verdadeiros portugueses: essas famílias devem ser protegidas e acarinhadas. Mas achamos muito bem que estes novos princípios se apliquem a essa gentuça que nos anda a invadir. Quanto mais tempo passarem a trabalhar, menos tempo têm para andar por aí a assaltar turistas e a violar as nossas mulheres! Opróbio!

Porcínio (com entusiasmo) Pinóquio!

Barnabé (depois de sorrir de novo para a câmara) Aliás, essa gente que não é cristã pode muito bem trabalhar aos domingos e feriados. Sempre se evita que andem a viver à custa dos contribuintes portugueses, a acumular subsídios, e a ter filhos às ninhadas, como ratos, para se encostarem ao abono de família e passarem à frente das crianças portuguesas nas creches! Opróbio!

Samuel (sem se poder conter) Magnífico, Barnabé! Então agora já não o preocupa que os imigrantes façam o trabalho todo e não fique nada para os portugueses? Ou voltamos à falácia do imigrante de Schrödinger que ocupa os empregos todos e ainda abicha todos os subsídios?

Porcínio – Micróbio!

Salvador (depois de três inspirações profundas e um golo da sua caneca) – Então, vamos com calma! Não se interrompam uns aos outros! Com calma, sim? (faz uma pequena pausa) Porcínio, você que vem das bases, o que lhe parece que os trabalhadores pensam destas alterações às leis do trabalho?

Porcínio – Eu… Eu acho…. Olhe, quando eu estava na padaria, trabalhávamos de noite e nunca nos fez mal! Agora… agora com esses imigrantes… essa gente… olhe, ninguém quer trabalhar, só querem subsídios! Pinóquio! (solta um sonoro arroto) Pinóquio, é o que é!

Alucinada (tosse ligeiramente para aclarar a voz e chamar a atenção) – Hum, hum! Se me dão licença… eu acho estas novas leis muito bem feitas! Sobretudo a história da amamentação! É um abuso! A senhora ministra contou que há muitas, imensas mulheres, a dizer que amamentam os filhos até ao nono ano, só para terem redução de horário!

Barnabé – Opróbio!

Porcínio – Mictório!

Maria (numa voz muito suave que obriga todos a calar-se para a ouvir) – Mas a amamentação é fundamental no desenvolvimento das crianças. Se queremos que haja mais bebés, portanto, temos de proteger as mães, na gravidez e nos primeiros anos de vida dos pequeninos. Amor omnia vincit! Nem fazem ideia da diferença que faz terem tido a mãe com eles. Vê-se perfeitamente, portanto, quando chegam à escola…!

Barnabé (com um sorriso rasgado para a câmara) – Ora é aí que devia haver diferenças! É aí que os verdadeiros portugueses não podem ser ultrapassados por essa estrangeirada que nos quer invadir. Os imigrantes só deviam ter direito a alguma proteção nessas coisas depois de dez anos de permanência no país e só se não tiverem cometido nenhuma ilegalidade! E só a alguma, não a toda! Portugal para os portugueses! Opróbio!

Porcínio – Velório!

Samuel (furioso e incrédulo com o que ouviu) – Dez anos!? Mas você é doido, homem! Então as pessoas vão esperar dez anos para ter filhos?! E é assim que você quer que a natalidade aumente? Isso é de um racismo…!

Guilherme (interrompe) – Perdão, mas o racismo já terminou há muito tempo! Como ousa atirar essa carta, já fora do baralho, ao doutor Barnabé? Olhe que não pode valer tudo para ganhar o debate! (à parte, mas perfeitamente audível) Estas pessoas de esquerda são todas de uma maldade estrutural, de um sadismo…! Fazem-me horror!

Samuel (rangendo os dentes) – Sim, só porque você escreveu uma tese da treta, o racismo acabou logo! (muito baixo, furioso) Que cepo!

Guilherme (crescendo, extremamente zangado) – Será por causa da cor da minha pele que acha que me pode insultar?

Samuel (trocista) – Então o racismo não tinha acabado!? Homem, você decida-se!

Salvador (muito apreensivo com o rumo da conversa) – Vamos com calma! Peço que não entrem em diálogo, que perdemos o fio à meada…! (Pausa. Barnabé resmunga qualquer coisa incompreensível, de que apenas se entendem as palavras “gentuça” e “opróbio”. Porcínio resmunga “Velório!”) Doutor Guilherme, como está a ser encarada no meio universitário esta alteração da lei laboral? O setor será muito afetado?

Guilherme (empertigando-se) – Com franqueza, não faço ideia! Eu nunca tive dessas facilidades nem regalias de gravidez nem de amamentação, portanto essas coisas passam-me completamente ao lado. Isso são assuntos de mulheres e, na minha opinião, as mulheres deviam era estar em casa. Mas a esquerda radical sádica não descansou enquanto não afastou as mulheres das suas obrigações naturais para as pôr a trabalhar ao lado dos homens, sabe Deus com que inconfessáveis objetivos!… Por sinal, as faculdades estão cheias delas, umas convencidas! Agora aguentem! Querem ter filhos? Larguem o emprego! Querem amamentar? Fiquem no resguardo sagrado do lar!

Alucinada (que tem estado a pôr e a tirar os óculos num crescendo de entusiasmo, pondo-os uma vez mais) – O doutor Guilherme tirou-me as palavras da boca! Bravo! Sim, o lugar das mulheres é como guardiãs da santidade do lar e da família!

Samuel (sarcástico) – Ui, que cheiro a bafio!

Porcínio (prontamente) – Eu não fui!

Samuel solta uma gargalhada, que consegue, diplomaticamente, transformar num ataque de tosse. Salvador bebe mais alguns golos da sua caneca e respira fundo

Salvador – Vamos com calma, por favor. Volto a pedir que não entrem em diálogo nem se interrompam. (decidido) Julião, está a pensar num artigo sobre estas alterações às leis laborais? Pode levantar uma pontinha do véu?

Julião (depois de limpar cuidadosamente os óculos) – Ainda bem que me faz essa pergunta! Sim, mesmo correndo o risco de não ser levado a sério, estou a preparar uma crónica a respeito destas alterações que o governo quer fazer nas leis do trabalho. E o meu tema central é este: o trabalho dignifica o homem, diz o povo. Reparem, não é a humanidade, é o homem! Daqui se depreende que o trabalho remunerado não é para as mulheres. Está consagrado na sabedoria ancestral do povo, esse alfobre de senso comum e filosofia, da boa, da que interessa! Por isso, na sua sensatez, o governo dificulta o trabalho para as mulheres, nomeadamente para aquelas que têm filhos. Assim terão de se decidir: ou o trabalho ou os deveres naturais de esposa e mãe. É de mestre! (sorri, muito orgulhoso)

Samuel (prestes a entrar em combustão espontânea) – Ó Trambolho, só se for de mestre-de-obras, e é dos manhosos! Então você vem, em pleno século XXI, defender ideias que já há cem anos eram antiquadas?! De que máquina do tempo é que você saiu?  Então, e a sua mulher, não trabalha? E veja lá se o facto de ela trabalhar alguma vez interferiu na vossa decisão de ter os filhos todos que têm! Além do profundo machismo que tudo isso que você disse exala, quantas famílias, neste país de salários baixíssimos, é que você acha que poderiam sobreviver só com um salário? Diga, estou curioso...!

Barnabé (sorrindo para a câmara e num tom de quem teve a ideia perfeita) – Por isso é que nós exigimos que se colocasse a hipótese de alargar progressivamente o horário de trabalho, primeiro na agricultura, mas a estender depois a outros setores, até às 60 horas semanais. Isso vai aumentar imenso a produtividade e, por conseguinte, os salários!

Samuel (incrédulo) – Dez a doze horas por dia, cinco a seis dias por semana?! Voltámos ao século XIX e ninguém me avisou? E você chama a isso defender as famílias?! Volta, Charles Dickens! E tempo livre? Quando é que essas pessoas, a trabalhar com esses horários desumanos, têm tempo livre?

Alucinada (tirando os óculos) – Tempo livre? Para que é que essa gentinha quer tempo livre?

Barnabé (com um sorriso de escárnio) – Deve ser para cometerem crimes, para se embebedarem e a andarem a violar as nossas mulheres! Ou para terem ainda mais filhos e se encherem de subsídios! Opróbio! Opróbio!

Porcínio – Obséquio! Obséquio! (solta um arroto)

Guilherme (soerguendo-se na cadeira com o entusiasmo) – E é muito bem feito! Se não querem ser violadas, fiquem em casa!

Samuel dá um violento murro na mesa e uma das canecas cai com o ruído de loiça a quebrar. Maria benze-se, apavorada. Alucinada grita “As mulheres são as guardiãs da santidade do lar!”, agitando os óculos. Samuel, erguendo a voz, acusa os outros de serem fascistas, retrógrados, machistas, misóginos e inimigos dos trabalhadores.  Trambolho, que se mantém prudentemente sentado no seu lugar, parece encantado com a confusão. A balbúrdia é total.  Porcínio, sem deixar de gritar “Obséquio!”, entre arrotos, pega numa cadeira e ameaça SamuelBarnabé passa os dedos pelo cabelo e sorri para a câmara, fazendo pose. Salvador, desesperado, engole o resto do conteúdo da sua caneca e tenta chamar os participantes à razão.

Salvador (aos gritos) – Senhores e senhoras! Vamos com calma! Isto é um debate civilizado! Vamos com calma, por favor! Porcínio! Porcínio, pouse essa cadeira! Por favor, estamos no ar! Porcínio! A cadeira!

Agora gritando “Mictório!”, Porcínio atira ao ar a cadeira, que acerta em Salvador e o deixa sem acordo. Guilherme, de pé em cima da sua cadeira, aplaude e agita os braços como se dirigisse uma orquestra. Maria desmaia, caindo nos braços de Samuel que, atarantado, sem saber o que fazer, acaba por pousá-la suavemente numa das cadeiras. Surge um locutor desconhecido vindo de fora e coloca-se em frente da câmara. Por trás dele, a desordem continua aaumentar, com o som de loiça a partir-se e de livros a cair no chão.

Locutor – Senhores telespetadores, por motivos técnicos, somos forçados a interromper esta emissão. O programa volta para a semana, no mesmo horário.

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