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jigajoga

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18
Ago25

NOVAS CONVERSAS COM COISOS - SEGUNDO EPISÓDIO

Alface do Campo

O mesmo cenário e o painel residente sentado nos mesmos lugares. Na ponta esquerda, senta-se um convidado especial. Alucinada traz um vestido de pintinhas azuis em fundo branco com um grande laço no decote e os óculos de aros cor-de-rosa estão pendurados ao pescoço por uma fita do mesmo azul do vestido. Porcínio está em mangas de camisa, branca, com uma gravata cor de cenoura que parece estrangulá-lo. Guilherme veste um fato de linho cru e camisa desportiva amarela. Maria traz uma túnica em cinza-claro e uma blusa lilás e continua a parecer uma freira em férias. Barnabé traz um polo Lacoste em rosa salmão e um pin do Prontos! ao peito. Julião veste um polo verde-claro, Samuel traz uma t-shirt vermelha e o convidado veste de preto com colarinho sacerdotal. É um homem de idade indefinida, alto e magro, cabelo ralo e curto, olhos brilhantes e perscrutadores por detrás dos óculos de aros metálicos. As sobrancelhas finas, em forma de acento circunflexo, dão-lhe um ar ao mesmo tempo inquisitivo e malévolo. O nariz afilado e a boca pequena de lábios finos compõem um rosto com qualquer coisa de raposa ou de rato. Ao centro, Salvador, com o seu polo do programa, parece um pouco nervoso, depois da confusão em que a primeira Conversa terminou e consulta um pequeno molho de fichas à sua frente.

Salvador – Muito boa noite. Estamos aqui para mais uma Nova Conversa com Coisos. Á minha direita, a Doutora Alucinada da Pipoca Frita, o deputado Porcínio Galinha, o historiador e investigador Guilherme Riacho e Meio e Julião Trambolho, jornalista. À esquerda a Professora Maria da Castidade Perpétua, o advogado e secretário geral do Prontos! Barnabé Desgraça, Samuel Alfarrobeira, jornalista d’O Calhamaço e o nosso convidado especial de hoje, o Padre D. Sebastião Amaral de Portalegre Tavares de Meneses Alpedrinha e Cortegaça, sacerdote católico e cronista regular no jornal “Olho do Curioso” e também terceiro barão da Ervilheira. Seja bem vindo ao nosso programa, que hoje versará o tema candente da Identidade de Género e do seu lugar nas políticas educativas e culturais públicas. E pedia desde já ao nosso convidado que fosse o primeiro a falar, trazendo-nos a posição da Igreja. Padre D. Sebastião, como encara a Igreja a inclusão das temáticas da Identidade de Género na vida escolar e cultural?

O padre sorri, mostrando os dentes miúdos e bicudos.

Padre (sorrindo sempre) – Talvez eu nem devesse dizer nada, já que sendo homem, branco, sem problema de me identificar com outro género que não o que Deus Nosso Senhor me deu, cristão e, ainda por cima, padre, não devo, segundo os ditames do politicamente correto, ter sequer o direito de abrir a boca. (pára e olha em volta, sorrindo sempre, como a avaliar o efeito da frase que acabou de pronunciar) Mas como sou bem educado, sinto que é meu dever responder à sua pergunta. É com profunda inquietação que a Igreja vê estes assuntos indecentes, estas temáticas pornográficas, estas questões que tudo reduzem à luxúria desenfreada, serem postas assim ao alcance das crianças e dos jovens. E, pior ainda, que isso se faça com o beneplácito do Estado e nos lugares onde estas camadas tão frágeis e influenciáveis da população mais seguras deviam estar: as escolas e as manifestações culturais e artísticas. Estou profundamente preocupado e até chocado com o simples facto de se pensar nisso nas esferas da governação!

Barnabé – Opróbio!

Porcínio – Velório !

 Samuel (sem conseguir conter-se) – A identidade de género não tem rigorosamente nada a ver com luxúria ou pornografia. É apenas uma questão, lá está, de identidade, pura e simplesmente. Acho de muito mau gosto que um sacerdote venha aqui lançar um libelo, fundamentado, ainda por cima, numa perceção inexata e cheia de falácias, sobre uma questão tão íntima, pessoal e geradora de sofrimento para alguns. Faço minhas as palavras da grande Rosa Luxemburgo, sou, como ela, por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

Padre (em voz melíflua e sem deixar de sorrir com ar superior e desdenhoso) – Ah, eu conheço bem o seu tipo! Pensa talvez que me atrapalha com palavras difíceis e citações. Eu estudei em Roma e em Paris, meu pai era ministro plenipotenciário numa grande cidade europeia, as suas palavras caras e as suas citações heréticas escorregam pela couraça da minha indignação como água pelas costas de um pato! O vosso relativismo moral pode enganar os incautos, mas para mim é transparente! Vêm armados em inocentes, em bem-intencionados, em protetores dos fracos e oprimidos, mas os verdadeiros fiéis reconhecem o veneno que as vossas palavras escondem. É a luxúria, é o pecado da carne, a corrupção do que há de mais sagrado nos valores europeus, o assassinar da herança dos nossos antepassados e da nossa matriz cristã, é isso que está sempre por detrás das vossas ações! Mas lembrem-se, Deus não dorme e o que começa por brincar com o género acaba a brincar com a alma.

MariaAgnus Dei, qui tolis pecata Mundi!

Alucinada – Bravo! Bravo!

Barnabé – A luxúria! O pecado! Opróbio!

Porcínio – Pistácio!

 Salvador (muito atrapalhado, e sentindo que está a perder o controle da situação) – Meus senhores, vamos com calma! Peço que não se interrompam nem dialoguem uns com os outros.

Samuel resmunga “Padreca filho da mãe!”. O padre sorri e levanta os olhos para o alto, como se pedisse ajuda divina. Julião olha para os outros com ar condescendente, como quem pensa “Coitados!”. Porcínio solta um pequeno arroto e murmura “Pistácio!”. Depois tira o cigarro detrás da orelha e tenta palitar os dentes com ele. Ao verificar que é o cigarro, cospe os pedacinhos de tabaco e bebe todo o conteúdo da sua caneca. Limpa a boca à mão. Faz-se um pouco de silêncio e Salvador aproveita.

Salvador – Vamos agora ouvir a Professora Maria da Castidade. Senhora professora, como vai trabalhar estas temáticas com os seus alunos do primeiro ciclo?

Maria (depois de se benzer) – Ai, nem me diga nada! Nem tenho dormido, com a inquietação. Mas já decidi! Portanto, se me quiserem obrigar a falar de assuntos indecentes e luxuriosos, resistirei até ao meu último fôlego. Nunca condenarei ad aeternum as almas puras dos meus alunos! Ad astra per aspera!

O Padre sorri, com ar triunfante. Samuel prepara-se para intervir, mas Salvador antecipa-se.

Salvador – Doutora Alucinada, a AFCC reúne muitos pais de crianças em idade escolar. Como encaram a introdução das questões de identidade de género nas escolas?

Alucinada (pondo os óculos) – Já organizámos uma vigília no adro da Sé de Braga, com velas, leituras da Bíblia e um cartaz com o nosso lema “Deixem as crianças ser puras!”. E eu já denunciei, no meu canal no YouTube, o que se está a passar numa escola, em Vilariça dos Perdigotos, onde, sob a capa de debater essa coisa da identidade de género, vestiram os meninos todos com collants brancos, maquilharam-nos e quiseram obrigá-los a dizer que eram meninas! Que horror! Pois se uma criança não é capaz de escolher entre sopa e esparguete, quanto mais entre género masculino e feminino! É um atentado à pureza das nossas crianças! É como diz o Apocalipse: os tempos do fim virão vestidos de unicórnio.

Barnabé – Opróbio!

 Porcínio – Velório!

 Salvador (muito depressa, antes que a situação descambe) Porcínio, e qual é o sentir do povo?

Porcínio (usando a gravata para limpar o suor da testa e do bigode) – Eu… eu acho... acho que nos querem baralhar as ideias. Quando eu trabalhava na padaria, também misturávamos aquilo tudo, mas olhe, no fim saía sempre pão! Agora... Olhe… é essa gentalha enfarruscada… esses indu… indi… essa gente de fora!  (Arrota) É tudo uma bandalheira! … Olhe… Velório! É o que eu lhe digo, velório!

 Samuel (baixo, mas audível) – Este hipopótamo não diz uma que se aproveite! Forte bruto!

Barnabé (depois de sorrir para a câmara) – Ó Salvador, deixe-me só dizer isto: a esquerda traz essas questões para o centro do debate, para desviar as atenções das carradas, sim carradas de estrangeiros, gente que não é da nossa cultura, que não tem os nossos valores, que não fala a nossa língua e que vem, às carradas, repito, roubar os nossos empregos e viver de subsídios sem trabalhar! Opróbio!

Samuel (incapaz de se conter) – Ó Barnabé, tenha paciência, mas você ouve-se? Você ouve-se?! Então se vêm viver de subsídios sem trabalhar, como é que roubam os empregos? E se roubam os empregos, como é que estão a viver de subsídios sem trabalhar?

Barnabé (sorrindo e pestanejando para a câmara) – Ó Samuel, lá vem você com os seus joguinhos de palavras! Por isso é que as pessoas deixaram de votar na esquerda, vocês têm essa linguagem hermética, esses rodriguinhos que as pessoas comuns não entendem…!

Porcínio (meio levantado, todo esparramado por cima da mesa e agitando o punho ameaçador na direção de Samuel) - Micróbio! Micróbio!

 Samuel (entre dentes) – Micróbio é a tua tia, pá! Calhau com olhos!

 Salvador (tentando impor ordem) – Meus senhores, vamos com calma, sim? Porcínio! Porcínio, então, não pode agredir os outros participantes… Porcínio! Largue essa garrafa, isso é uma peça de design, custa uma fortuna! Porcínio, olhe que há senhoras presentes!

O argumento da presença das senhoras parece acalmar Porcínio, que pousa a garrafa e volta a sentar-se, não sem antes soltar mais um arroto e um “Micróbio!”

Salvador (suspirando de alívio) - Vamos agora ouvir a imprensa. Julião, como interpreta este assunto? Na sua mais recente crónica no Valor Nacional, “O género vai à consulta”, traçou um paralelo muito interessante entre a identidade de género e os seguros de saúde. Quer expandir um pouco essa ideia?

Julião – Eu já estou habituado a que não me levem a sério, mas sempre lhe digo isto: você vai fazer um seguro de saúde, porque o SNS cada vez funciona pior, se é que alguma vez funcionou bem! Se você tem bons dentes, e a cobertura para medicina dentária lhe custa mais 50 euros por mês, você prescinde dela. Mas se for hipocondríaco, já vai querer, não é? Com a identidade de género é a mesma coisa: se você for uma pessoa normal, nem sequer pensa nisso. Mas se for um desatinado da esquerda identitária, vai procurar o que for mais chocante, que neste momento é a identidade de género, como podia ser a cor do cabelo ou o tamanho dos colarinhos... Isto é, basicamente, o gang do arco-íris a pôr as unhas de fora. Até mesmo na minha experiência de pai de oito filhos, considero que tudo isto são, afinal, estratégias de marketing da militância afetiva!

Guilherme (incapaz de se conter, felicíssimo) – Gang do arco-íris, que magnífica expressão. Lembro-me muito bem de a ter criado aqui há uns meses, num artigo que publiquei no Conservative Science, que teve excelentes reviews, sobre como a política esquerdalha do chicote impõe, quantas vezes à força, quantas vezes sobre o suor e as lágrimas de crianças, pais e professores - os poucos que não estão perdidos, entregues ao comunismo e às suas depravações desviantes – estes assuntos a que só se pode aplicar um nome, só um, indigência moral, anormalidade ética, culto do pecado! O artigo intitula-se “Leftism is a mental disorder” e só não ganhou um prémio Pioneer, porque uma associação de canhotos do Alasca percebeu mal o artigo e me quis processar por difamação...Ignaros! Embora eu suspeite que foi tudo por causa da cor da minha pele...!

Samuel (tão zangado que quase fumega) – Nunca tinha ouvido uma coleção tão grande de disparates! Nada, repito, nada do que aqui foi dito tem alguma coisa a ver com identidade de género. Nada!  Identidade de género não é senão a experiência subjetiva e individual de cada pessoa sobre o seu género. A inclusão deste tema na educação e nas manifestações culturais tem, apenas e tão só, a ver com a aceitação e integração de todos numa sociedade aberta e plural. Só marginalmente tem a ver com sexo e apenas na medida em que uma pessoa se identifica em termos de género com o sexo atribuído à nascença ou não. Como diz Toni Morrison, a linguagem é o campo de batalha onde se decide o futuro da liberdade. É absolutamente espantoso como conseguiram transformar uma coisa tão simples num bicho de sete cabeças.  As coisas que a S’Dona Alucinada foi buscar! Até a “Dança dos Patinhos” na festa de Natal da Escola Básica de Vilariça dos Perdigotos! Miúdos de seis anos vestidos de patinhos – claro que estavam de collants brancos e maquilhados! E é isso que a escandaliza?!

Maria e o Padre benzem-se, horrorizados.

Barnabé – Lá está você a chamar-nos estúpidos! Esta mania que a esquerda tem de que é superior! É insuportável! Opróbio!

Porcínio – Pistácio!

Samuel – Perdão! Não chamei estúpido a ninguém! Se calhar, devia ter chamado, mas não o fiz!

Barnabé (com um sorriso sarcástico) – Afinal, você enrolou, enrolou, e não disse nada! E sabe porquê? Porque não há nada para dizer! Falam de identidade de género, mas querem acabar com a nossa identidade portuguesa, a única identidade que importa. Porque isto é tudo uma manobra de diversão para atirar areia aos olhos do povo, enquanto escancaram as portas da nossa amada pátria e trazem para este país aviões e comboios cheios de gentuça estrangeira, que não se quer integrar e que quer impor as suas leis e os seus costumes bárbaros! Levem-nos para vossas casas, já que gostam tanto deles! Opróbio!

Porcínio (entre dois arrotos) – Velório!

Antes que Salvador tenha tempo de reagir, todos se levantam. Alucinada grita que o pai de uma das crianças lhe contou que a festa de Natal da escola tinha sido uma pornografia pegada e Maria benze-se, chocadíssima. Guilherme e Trambolho mergulham numa discussão animada sobre qual deles inventou a expressão “Gang do arco-íris”, envolvendo muito gesticular e várias referências bibliográficas.   Barnabé, depois de certificar de que a câmara está focada nele, cumprimenta o Padre D. Sebastião com beija-mão e muitas mostras de grande devoção. Samuel escreve no telemóvel uma entrada na rede social “Vejam”, abanando a cabeça, como quem descrê da humanidade.

Salvador (gaguejando, completamente desesperado) – E... e... ass...assim...assim che... che...

Entretanto Porcínio acende um cigarro e o alarme de incêndios começa a tocar estrondosamente, enquanto os aspersores começam a deitar água. Todos fogem aos gritos.

Salvador (fugindo com os outros, mas ainda a tentar encerrar o programa) - ... assim... nos desped...emos... da... Nova... C-COISO!

 

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