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jigajoga

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26
Ago25

NOVAS CONVERSAS COM COISOS - TERCEIRO EPISÓDIO

Alface do Campo

O cenário sofreu algumas alterações depois do banho que levou na sessão anterior. A decoração de fundo é agora uma nuvem de palavras, das quais se destacam, em letras maiores CONVERSAS e COISOS. O painel residente senta-se nos lugares habituais.

Dado o calor que tem feito, Maria veste um vestido florido, em tons de rosa e verde, de mangas curtas e pequena gola branca bordada. Porcínio parece à beira de uma apoplexia, quase enforcado numa gravata azul às bolinhas brancas. Guilherme apresenta-se muito fresco, com uma camisa de linho azul, de manga curta. Barnabé, com um bronze impecável, veste um polo ADIDAS branco, com as clássicas risquinhas em vermelho e azul-marinho nas mangas e na gola. Alucinada traz uma blusa azul-celeste, arrendada, e os óculos, desta vez de aros azuis, pendurados ao pescoço num cordão de missangas vermelhas e brancas.

JM Trambolho e Samuel estão de t-shirt branca e até Salvador trocou o seu polo com o logotipo do programa por uma t-shirt azul-turquesa, também com um pequeno logotipo do canal. Sobre a mesa, além das canecas personalizadas e das garrafas de Siza Vieira, um grosso volume de O Capital, e uma pequena pilha de obras de economistas liberais – Mises, Hayek, Kirzner...

Salvador (parecendo muito animado) – Muito boa noite e bem-vindos, mais uma vez, a uma sessão das Novas Conversas com Coisos. Aqui, neste cenário renovado (dá uma gargalhadinha nervosa) depois do pequeno acidente da semana passada, acolhemos o nosso painel habitual: Professora Maria da Castidade Perpétua, deputado Porcínio Galinha, Doutor Guilherme Riacho e Meio, Doutora Alucinada da Pipoca Frita, Doutor Barnabé Desgraça e os jornalistas e comentadores Julião Marco Trambolho e Samuel Alfarrobeira. Eu sou o Salvador Aflito e o nosso tema de hoje é atualíssimo – a nova legislação laboral.

Vamos começar com os políticos, já que é da atividade do Governo que surge esta nova lei e é na Assembleia da República que ela tem de ser discutida e votada. Doutor Barnabé, o que pensa o Prontos! das alterações que o Governo quer introduzir na lei laboral?

Barnabé (olha diretamente para a câmara, pestaneja e sorri antes de começar a falar) – Em primeiro lugar, boa noite aos meus colegas de painel e a todos os portugueses que nos veem. O Prontos! concorda, na generalidade, com estas alterações. No entanto, há algumas que nos desagradam, por atacarem as famílias de verdadeiros portugueses: essas famílias devem ser protegidas e acarinhadas. Mas achamos muito bem que estes novos princípios se apliquem a essa gentuça que nos anda a invadir. Quanto mais tempo passarem a trabalhar, menos tempo têm para andar por aí a assaltar turistas e a violar as nossas mulheres! Opróbio!

Porcínio (com entusiasmo) Pinóquio!

Barnabé (depois de sorrir de novo para a câmara) Aliás, essa gente que não é cristã pode muito bem trabalhar aos domingos e feriados. Sempre se evita que andem a viver à custa dos contribuintes portugueses, a acumular subsídios, e a ter filhos às ninhadas, como ratos, para se encostarem ao abono de família e passarem à frente das crianças portuguesas nas creches! Opróbio!

Samuel (sem se poder conter) Magnífico, Barnabé! Então agora já não o preocupa que os imigrantes façam o trabalho todo e não fique nada para os portugueses? Ou voltamos à falácia do imigrante de Schrödinger que ocupa os empregos todos e ainda abicha todos os subsídios?

Porcínio – Micróbio!

Salvador (depois de três inspirações profundas e um golo da sua caneca) – Então, vamos com calma! Não se interrompam uns aos outros! Com calma, sim? (faz uma pequena pausa) Porcínio, você que vem das bases, o que lhe parece que os trabalhadores pensam destas alterações às leis do trabalho?

Porcínio – Eu… Eu acho…. Olhe, quando eu estava na padaria, trabalhávamos de noite e nunca nos fez mal! Agora… agora com esses imigrantes… essa gente… olhe, ninguém quer trabalhar, só querem subsídios! Pinóquio! (solta um sonoro arroto) Pinóquio, é o que é!

Alucinada (tosse ligeiramente para aclarar a voz e chamar a atenção) – Hum, hum! Se me dão licença… eu acho estas novas leis muito bem feitas! Sobretudo a história da amamentação! É um abuso! A senhora ministra contou que há muitas, imensas mulheres, a dizer que amamentam os filhos até ao nono ano, só para terem redução de horário!

Barnabé – Opróbio!

Porcínio – Mictório!

Maria (numa voz muito suave que obriga todos a calar-se para a ouvir) – Mas a amamentação é fundamental no desenvolvimento das crianças. Se queremos que haja mais bebés, portanto, temos de proteger as mães, na gravidez e nos primeiros anos de vida dos pequeninos. Amor omnia vincit! Nem fazem ideia da diferença que faz terem tido a mãe com eles. Vê-se perfeitamente, portanto, quando chegam à escola…!

Barnabé (com um sorriso rasgado para a câmara) – Ora é aí que devia haver diferenças! É aí que os verdadeiros portugueses não podem ser ultrapassados por essa estrangeirada que nos quer invadir. Os imigrantes só deviam ter direito a alguma proteção nessas coisas depois de dez anos de permanência no país e só se não tiverem cometido nenhuma ilegalidade! E só a alguma, não a toda! Portugal para os portugueses! Opróbio!

Porcínio – Velório!

Samuel (furioso e incrédulo com o que ouviu) – Dez anos!? Mas você é doido, homem! Então as pessoas vão esperar dez anos para ter filhos?! E é assim que você quer que a natalidade aumente? Isso é de um racismo…!

Guilherme (interrompe) – Perdão, mas o racismo já terminou há muito tempo! Como ousa atirar essa carta, já fora do baralho, ao doutor Barnabé? Olhe que não pode valer tudo para ganhar o debate! (à parte, mas perfeitamente audível) Estas pessoas de esquerda são todas de uma maldade estrutural, de um sadismo…! Fazem-me horror!

Samuel (rangendo os dentes) – Sim, só porque você escreveu uma tese da treta, o racismo acabou logo! (muito baixo, furioso) Que cepo!

Guilherme (crescendo, extremamente zangado) – Será por causa da cor da minha pele que acha que me pode insultar?

Samuel (trocista) – Então o racismo não tinha acabado!? Homem, você decida-se!

Salvador (muito apreensivo com o rumo da conversa) – Vamos com calma! Peço que não entrem em diálogo, que perdemos o fio à meada…! (Pausa. Barnabé resmunga qualquer coisa incompreensível, de que apenas se entendem as palavras “gentuça” e “opróbio”. Porcínio resmunga “Velório!”) Doutor Guilherme, como está a ser encarada no meio universitário esta alteração da lei laboral? O setor será muito afetado?

Guilherme (empertigando-se) – Com franqueza, não faço ideia! Eu nunca tive dessas facilidades nem regalias de gravidez nem de amamentação, portanto essas coisas passam-me completamente ao lado. Isso são assuntos de mulheres e, na minha opinião, as mulheres deviam era estar em casa. Mas a esquerda radical sádica não descansou enquanto não afastou as mulheres das suas obrigações naturais para as pôr a trabalhar ao lado dos homens, sabe Deus com que inconfessáveis objetivos!… Por sinal, as faculdades estão cheias delas, umas convencidas! Agora aguentem! Querem ter filhos? Larguem o emprego! Querem amamentar? Fiquem no resguardo sagrado do lar!

Alucinada (que tem estado a pôr e a tirar os óculos num crescendo de entusiasmo, pondo-os uma vez mais) – O doutor Guilherme tirou-me as palavras da boca! Bravo! Sim, o lugar das mulheres é como guardiãs da santidade do lar e da família!

Samuel (sarcástico) – Ui, que cheiro a bafio!

Porcínio (prontamente) – Eu não fui!

Samuel solta uma gargalhada, que consegue, diplomaticamente, transformar num ataque de tosse. Salvador bebe mais alguns golos da sua caneca e respira fundo

Salvador – Vamos com calma, por favor. Volto a pedir que não entrem em diálogo nem se interrompam. (decidido) Julião, está a pensar num artigo sobre estas alterações às leis laborais? Pode levantar uma pontinha do véu?

Julião (depois de limpar cuidadosamente os óculos) – Ainda bem que me faz essa pergunta! Sim, mesmo correndo o risco de não ser levado a sério, estou a preparar uma crónica a respeito destas alterações que o governo quer fazer nas leis do trabalho. E o meu tema central é este: o trabalho dignifica o homem, diz o povo. Reparem, não é a humanidade, é o homem! Daqui se depreende que o trabalho remunerado não é para as mulheres. Está consagrado na sabedoria ancestral do povo, esse alfobre de senso comum e filosofia, da boa, da que interessa! Por isso, na sua sensatez, o governo dificulta o trabalho para as mulheres, nomeadamente para aquelas que têm filhos. Assim terão de se decidir: ou o trabalho ou os deveres naturais de esposa e mãe. É de mestre! (sorri, muito orgulhoso)

Samuel (prestes a entrar em combustão espontânea) – Ó Trambolho, só se for de mestre-de-obras, e é dos manhosos! Então você vem, em pleno século XXI, defender ideias que já há cem anos eram antiquadas?! De que máquina do tempo é que você saiu?  Então, e a sua mulher, não trabalha? E veja lá se o facto de ela trabalhar alguma vez interferiu na vossa decisão de ter os filhos todos que têm! Além do profundo machismo que tudo isso que você disse exala, quantas famílias, neste país de salários baixíssimos, é que você acha que poderiam sobreviver só com um salário? Diga, estou curioso...!

Barnabé (sorrindo para a câmara e num tom de quem teve a ideia perfeita) – Por isso é que nós exigimos que se colocasse a hipótese de alargar progressivamente o horário de trabalho, primeiro na agricultura, mas a estender depois a outros setores, até às 60 horas semanais. Isso vai aumentar imenso a produtividade e, por conseguinte, os salários!

Samuel (incrédulo) – Dez a doze horas por dia, cinco a seis dias por semana?! Voltámos ao século XIX e ninguém me avisou? E você chama a isso defender as famílias?! Volta, Charles Dickens! E tempo livre? Quando é que essas pessoas, a trabalhar com esses horários desumanos, têm tempo livre?

Alucinada (tirando os óculos) – Tempo livre? Para que é que essa gentinha quer tempo livre?

Barnabé (com um sorriso de escárnio) – Deve ser para cometerem crimes, para se embebedarem e a andarem a violar as nossas mulheres! Ou para terem ainda mais filhos e se encherem de subsídios! Opróbio! Opróbio!

Porcínio – Obséquio! Obséquio! (solta um arroto)

Guilherme (soerguendo-se na cadeira com o entusiasmo) – E é muito bem feito! Se não querem ser violadas, fiquem em casa!

Samuel dá um violento murro na mesa e uma das canecas cai com o ruído de loiça a quebrar. Maria benze-se, apavorada. Alucinada grita “As mulheres são as guardiãs da santidade do lar!”, agitando os óculos. Samuel, erguendo a voz, acusa os outros de serem fascistas, retrógrados, machistas, misóginos e inimigos dos trabalhadores.  Trambolho, que se mantém prudentemente sentado no seu lugar, parece encantado com a confusão. A balbúrdia é total.  Porcínio, sem deixar de gritar “Obséquio!”, entre arrotos, pega numa cadeira e ameaça SamuelBarnabé passa os dedos pelo cabelo e sorri para a câmara, fazendo pose. Salvador, desesperado, engole o resto do conteúdo da sua caneca e tenta chamar os participantes à razão.

Salvador (aos gritos) – Senhores e senhoras! Vamos com calma! Isto é um debate civilizado! Vamos com calma, por favor! Porcínio! Porcínio, pouse essa cadeira! Por favor, estamos no ar! Porcínio! A cadeira!

Agora gritando “Mictório!”, Porcínio atira ao ar a cadeira, que acerta em Salvador e o deixa sem acordo. Guilherme, de pé em cima da sua cadeira, aplaude e agita os braços como se dirigisse uma orquestra. Maria desmaia, caindo nos braços de Samuel que, atarantado, sem saber o que fazer, acaba por pousá-la suavemente numa das cadeiras. Surge um locutor desconhecido vindo de fora e coloca-se em frente da câmara. Por trás dele, a desordem continua aaumentar, com o som de loiça a partir-se e de livros a cair no chão.

Locutor – Senhores telespetadores, por motivos técnicos, somos forçados a interromper esta emissão. O programa volta para a semana, no mesmo horário.

18
Ago25

NOVAS CONVERSAS COM COISOS - SEGUNDO EPISÓDIO

Alface do Campo

O mesmo cenário e o painel residente sentado nos mesmos lugares. Na ponta esquerda, senta-se um convidado especial. Alucinada traz um vestido de pintinhas azuis em fundo branco com um grande laço no decote e os óculos de aros cor-de-rosa estão pendurados ao pescoço por uma fita do mesmo azul do vestido. Porcínio está em mangas de camisa, branca, com uma gravata cor de cenoura que parece estrangulá-lo. Guilherme veste um fato de linho cru e camisa desportiva amarela. Maria traz uma túnica em cinza-claro e uma blusa lilás e continua a parecer uma freira em férias. Barnabé traz um polo Lacoste em rosa salmão e um pin do Prontos! ao peito. Julião veste um polo verde-claro, Samuel traz uma t-shirt vermelha e o convidado veste de preto com colarinho sacerdotal. É um homem de idade indefinida, alto e magro, cabelo ralo e curto, olhos brilhantes e perscrutadores por detrás dos óculos de aros metálicos. As sobrancelhas finas, em forma de acento circunflexo, dão-lhe um ar ao mesmo tempo inquisitivo e malévolo. O nariz afilado e a boca pequena de lábios finos compõem um rosto com qualquer coisa de raposa ou de rato. Ao centro, Salvador, com o seu polo do programa, parece um pouco nervoso, depois da confusão em que a primeira Conversa terminou e consulta um pequeno molho de fichas à sua frente.

Salvador – Muito boa noite. Estamos aqui para mais uma Nova Conversa com Coisos. Á minha direita, a Doutora Alucinada da Pipoca Frita, o deputado Porcínio Galinha, o historiador e investigador Guilherme Riacho e Meio e Julião Trambolho, jornalista. À esquerda a Professora Maria da Castidade Perpétua, o advogado e secretário geral do Prontos! Barnabé Desgraça, Samuel Alfarrobeira, jornalista d’O Calhamaço e o nosso convidado especial de hoje, o Padre D. Sebastião Amaral de Portalegre Tavares de Meneses Alpedrinha e Cortegaça, sacerdote católico e cronista regular no jornal “Olho do Curioso” e também terceiro barão da Ervilheira. Seja bem vindo ao nosso programa, que hoje versará o tema candente da Identidade de Género e do seu lugar nas políticas educativas e culturais públicas. E pedia desde já ao nosso convidado que fosse o primeiro a falar, trazendo-nos a posição da Igreja. Padre D. Sebastião, como encara a Igreja a inclusão das temáticas da Identidade de Género na vida escolar e cultural?

O padre sorri, mostrando os dentes miúdos e bicudos.

Padre (sorrindo sempre) – Talvez eu nem devesse dizer nada, já que sendo homem, branco, sem problema de me identificar com outro género que não o que Deus Nosso Senhor me deu, cristão e, ainda por cima, padre, não devo, segundo os ditames do politicamente correto, ter sequer o direito de abrir a boca. (pára e olha em volta, sorrindo sempre, como a avaliar o efeito da frase que acabou de pronunciar) Mas como sou bem educado, sinto que é meu dever responder à sua pergunta. É com profunda inquietação que a Igreja vê estes assuntos indecentes, estas temáticas pornográficas, estas questões que tudo reduzem à luxúria desenfreada, serem postas assim ao alcance das crianças e dos jovens. E, pior ainda, que isso se faça com o beneplácito do Estado e nos lugares onde estas camadas tão frágeis e influenciáveis da população mais seguras deviam estar: as escolas e as manifestações culturais e artísticas. Estou profundamente preocupado e até chocado com o simples facto de se pensar nisso nas esferas da governação!

Barnabé – Opróbio!

Porcínio – Velório !

 Samuel (sem conseguir conter-se) – A identidade de género não tem rigorosamente nada a ver com luxúria ou pornografia. É apenas uma questão, lá está, de identidade, pura e simplesmente. Acho de muito mau gosto que um sacerdote venha aqui lançar um libelo, fundamentado, ainda por cima, numa perceção inexata e cheia de falácias, sobre uma questão tão íntima, pessoal e geradora de sofrimento para alguns. Faço minhas as palavras da grande Rosa Luxemburgo, sou, como ela, por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.

Padre (em voz melíflua e sem deixar de sorrir com ar superior e desdenhoso) – Ah, eu conheço bem o seu tipo! Pensa talvez que me atrapalha com palavras difíceis e citações. Eu estudei em Roma e em Paris, meu pai era ministro plenipotenciário numa grande cidade europeia, as suas palavras caras e as suas citações heréticas escorregam pela couraça da minha indignação como água pelas costas de um pato! O vosso relativismo moral pode enganar os incautos, mas para mim é transparente! Vêm armados em inocentes, em bem-intencionados, em protetores dos fracos e oprimidos, mas os verdadeiros fiéis reconhecem o veneno que as vossas palavras escondem. É a luxúria, é o pecado da carne, a corrupção do que há de mais sagrado nos valores europeus, o assassinar da herança dos nossos antepassados e da nossa matriz cristã, é isso que está sempre por detrás das vossas ações! Mas lembrem-se, Deus não dorme e o que começa por brincar com o género acaba a brincar com a alma.

MariaAgnus Dei, qui tolis pecata Mundi!

Alucinada – Bravo! Bravo!

Barnabé – A luxúria! O pecado! Opróbio!

Porcínio – Pistácio!

 Salvador (muito atrapalhado, e sentindo que está a perder o controle da situação) – Meus senhores, vamos com calma! Peço que não se interrompam nem dialoguem uns com os outros.

Samuel resmunga “Padreca filho da mãe!”. O padre sorri e levanta os olhos para o alto, como se pedisse ajuda divina. Julião olha para os outros com ar condescendente, como quem pensa “Coitados!”. Porcínio solta um pequeno arroto e murmura “Pistácio!”. Depois tira o cigarro detrás da orelha e tenta palitar os dentes com ele. Ao verificar que é o cigarro, cospe os pedacinhos de tabaco e bebe todo o conteúdo da sua caneca. Limpa a boca à mão. Faz-se um pouco de silêncio e Salvador aproveita.

Salvador – Vamos agora ouvir a Professora Maria da Castidade. Senhora professora, como vai trabalhar estas temáticas com os seus alunos do primeiro ciclo?

Maria (depois de se benzer) – Ai, nem me diga nada! Nem tenho dormido, com a inquietação. Mas já decidi! Portanto, se me quiserem obrigar a falar de assuntos indecentes e luxuriosos, resistirei até ao meu último fôlego. Nunca condenarei ad aeternum as almas puras dos meus alunos! Ad astra per aspera!

O Padre sorri, com ar triunfante. Samuel prepara-se para intervir, mas Salvador antecipa-se.

Salvador – Doutora Alucinada, a AFCC reúne muitos pais de crianças em idade escolar. Como encaram a introdução das questões de identidade de género nas escolas?

Alucinada (pondo os óculos) – Já organizámos uma vigília no adro da Sé de Braga, com velas, leituras da Bíblia e um cartaz com o nosso lema “Deixem as crianças ser puras!”. E eu já denunciei, no meu canal no YouTube, o que se está a passar numa escola, em Vilariça dos Perdigotos, onde, sob a capa de debater essa coisa da identidade de género, vestiram os meninos todos com collants brancos, maquilharam-nos e quiseram obrigá-los a dizer que eram meninas! Que horror! Pois se uma criança não é capaz de escolher entre sopa e esparguete, quanto mais entre género masculino e feminino! É um atentado à pureza das nossas crianças! É como diz o Apocalipse: os tempos do fim virão vestidos de unicórnio.

Barnabé – Opróbio!

 Porcínio – Velório!

 Salvador (muito depressa, antes que a situação descambe) Porcínio, e qual é o sentir do povo?

Porcínio (usando a gravata para limpar o suor da testa e do bigode) – Eu… eu acho... acho que nos querem baralhar as ideias. Quando eu trabalhava na padaria, também misturávamos aquilo tudo, mas olhe, no fim saía sempre pão! Agora... Olhe… é essa gentalha enfarruscada… esses indu… indi… essa gente de fora!  (Arrota) É tudo uma bandalheira! … Olhe… Velório! É o que eu lhe digo, velório!

 Samuel (baixo, mas audível) – Este hipopótamo não diz uma que se aproveite! Forte bruto!

Barnabé (depois de sorrir para a câmara) – Ó Salvador, deixe-me só dizer isto: a esquerda traz essas questões para o centro do debate, para desviar as atenções das carradas, sim carradas de estrangeiros, gente que não é da nossa cultura, que não tem os nossos valores, que não fala a nossa língua e que vem, às carradas, repito, roubar os nossos empregos e viver de subsídios sem trabalhar! Opróbio!

Samuel (incapaz de se conter) – Ó Barnabé, tenha paciência, mas você ouve-se? Você ouve-se?! Então se vêm viver de subsídios sem trabalhar, como é que roubam os empregos? E se roubam os empregos, como é que estão a viver de subsídios sem trabalhar?

Barnabé (sorrindo e pestanejando para a câmara) – Ó Samuel, lá vem você com os seus joguinhos de palavras! Por isso é que as pessoas deixaram de votar na esquerda, vocês têm essa linguagem hermética, esses rodriguinhos que as pessoas comuns não entendem…!

Porcínio (meio levantado, todo esparramado por cima da mesa e agitando o punho ameaçador na direção de Samuel) - Micróbio! Micróbio!

 Samuel (entre dentes) – Micróbio é a tua tia, pá! Calhau com olhos!

 Salvador (tentando impor ordem) – Meus senhores, vamos com calma, sim? Porcínio! Porcínio, então, não pode agredir os outros participantes… Porcínio! Largue essa garrafa, isso é uma peça de design, custa uma fortuna! Porcínio, olhe que há senhoras presentes!

O argumento da presença das senhoras parece acalmar Porcínio, que pousa a garrafa e volta a sentar-se, não sem antes soltar mais um arroto e um “Micróbio!”

Salvador (suspirando de alívio) - Vamos agora ouvir a imprensa. Julião, como interpreta este assunto? Na sua mais recente crónica no Valor Nacional, “O género vai à consulta”, traçou um paralelo muito interessante entre a identidade de género e os seguros de saúde. Quer expandir um pouco essa ideia?

Julião – Eu já estou habituado a que não me levem a sério, mas sempre lhe digo isto: você vai fazer um seguro de saúde, porque o SNS cada vez funciona pior, se é que alguma vez funcionou bem! Se você tem bons dentes, e a cobertura para medicina dentária lhe custa mais 50 euros por mês, você prescinde dela. Mas se for hipocondríaco, já vai querer, não é? Com a identidade de género é a mesma coisa: se você for uma pessoa normal, nem sequer pensa nisso. Mas se for um desatinado da esquerda identitária, vai procurar o que for mais chocante, que neste momento é a identidade de género, como podia ser a cor do cabelo ou o tamanho dos colarinhos... Isto é, basicamente, o gang do arco-íris a pôr as unhas de fora. Até mesmo na minha experiência de pai de oito filhos, considero que tudo isto são, afinal, estratégias de marketing da militância afetiva!

Guilherme (incapaz de se conter, felicíssimo) – Gang do arco-íris, que magnífica expressão. Lembro-me muito bem de a ter criado aqui há uns meses, num artigo que publiquei no Conservative Science, que teve excelentes reviews, sobre como a política esquerdalha do chicote impõe, quantas vezes à força, quantas vezes sobre o suor e as lágrimas de crianças, pais e professores - os poucos que não estão perdidos, entregues ao comunismo e às suas depravações desviantes – estes assuntos a que só se pode aplicar um nome, só um, indigência moral, anormalidade ética, culto do pecado! O artigo intitula-se “Leftism is a mental disorder” e só não ganhou um prémio Pioneer, porque uma associação de canhotos do Alasca percebeu mal o artigo e me quis processar por difamação...Ignaros! Embora eu suspeite que foi tudo por causa da cor da minha pele...!

Samuel (tão zangado que quase fumega) – Nunca tinha ouvido uma coleção tão grande de disparates! Nada, repito, nada do que aqui foi dito tem alguma coisa a ver com identidade de género. Nada!  Identidade de género não é senão a experiência subjetiva e individual de cada pessoa sobre o seu género. A inclusão deste tema na educação e nas manifestações culturais tem, apenas e tão só, a ver com a aceitação e integração de todos numa sociedade aberta e plural. Só marginalmente tem a ver com sexo e apenas na medida em que uma pessoa se identifica em termos de género com o sexo atribuído à nascença ou não. Como diz Toni Morrison, a linguagem é o campo de batalha onde se decide o futuro da liberdade. É absolutamente espantoso como conseguiram transformar uma coisa tão simples num bicho de sete cabeças.  As coisas que a S’Dona Alucinada foi buscar! Até a “Dança dos Patinhos” na festa de Natal da Escola Básica de Vilariça dos Perdigotos! Miúdos de seis anos vestidos de patinhos – claro que estavam de collants brancos e maquilhados! E é isso que a escandaliza?!

Maria e o Padre benzem-se, horrorizados.

Barnabé – Lá está você a chamar-nos estúpidos! Esta mania que a esquerda tem de que é superior! É insuportável! Opróbio!

Porcínio – Pistácio!

Samuel – Perdão! Não chamei estúpido a ninguém! Se calhar, devia ter chamado, mas não o fiz!

Barnabé (com um sorriso sarcástico) – Afinal, você enrolou, enrolou, e não disse nada! E sabe porquê? Porque não há nada para dizer! Falam de identidade de género, mas querem acabar com a nossa identidade portuguesa, a única identidade que importa. Porque isto é tudo uma manobra de diversão para atirar areia aos olhos do povo, enquanto escancaram as portas da nossa amada pátria e trazem para este país aviões e comboios cheios de gentuça estrangeira, que não se quer integrar e que quer impor as suas leis e os seus costumes bárbaros! Levem-nos para vossas casas, já que gostam tanto deles! Opróbio!

Porcínio (entre dois arrotos) – Velório!

Antes que Salvador tenha tempo de reagir, todos se levantam. Alucinada grita que o pai de uma das crianças lhe contou que a festa de Natal da escola tinha sido uma pornografia pegada e Maria benze-se, chocadíssima. Guilherme e Trambolho mergulham numa discussão animada sobre qual deles inventou a expressão “Gang do arco-íris”, envolvendo muito gesticular e várias referências bibliográficas.   Barnabé, depois de certificar de que a câmara está focada nele, cumprimenta o Padre D. Sebastião com beija-mão e muitas mostras de grande devoção. Samuel escreve no telemóvel uma entrada na rede social “Vejam”, abanando a cabeça, como quem descrê da humanidade.

Salvador (gaguejando, completamente desesperado) – E... e... ass...assim...assim che... che...

Entretanto Porcínio acende um cigarro e o alarme de incêndios começa a tocar estrondosamente, enquanto os aspersores começam a deitar água. Todos fogem aos gritos.

Salvador (fugindo com os outros, mas ainda a tentar encerrar o programa) - ... assim... nos desped...emos... da... Nova... C-COISO!

 

13
Ago25

NOVAS CONVERSAS COM COISOS - PRIMEIRO EPISÓDIO

Alface do Campo

Estúdio decorado com expressões escritas em vários tamanhos de Times New Roman. Salienta-se a expressão “Conversas com Coisos”, mas também “Debate Aceso” e “Diálogo Profícuo”. O tom predominante é o bege, com pequenos toques de verde e azul.

A mesa, em forma de boomerang, tem canecas personalizadas para cada interveniente, garrafas de água em cristal azul de design nacional (Siza Vieira) e pequenas pilhas de livros.

Ao centro senta-se Salvador Aflito, vestindo um pólo nas cores da decoração. À sua direita, Maria, depois Porcínio e, à extrema-direita, Guilherme. Na ponta, senta-se JM Trambolho. À esquerda do moderador, Alucinada, seguida por Barnabé e, na extrema-esquerda, Samuel.

Salvador (com um grande sorriso) — Muito boa noite e bem-vindos à nossa primeira Nova Conversa com Coisos. Ainda pensámos em chamar ao programa Eixo do Bem, mas havia questões de direitos de autor... (ri) Passo a apresentar o nosso painel residente.
À minha direita, a professora Maria da Castidade Perpétua, especialista em ensino básico e filha mais velha do famoso casal Perpétua, que tanto deu que falar há alguns anos.
Segue-se o deputado do Prontos!, Porcínio Galinha, e o Doutor Guilherme Riacho e Meio, historiador e investigador na área da história das mentalidades.
Na ponta encontra-se Julião Marco Trambolho, jornalista do Valor Nacional e comentador.

Do outro lado, a Doutora Alucinada da Pipoca Frita, presidenta da Associação de Famílias em Crescimento Contínuo e autora de vários livros — dos quais destaco o título Desperta, ó meu país! (Toda a verdade sobre as mentiras que ensinam aos nossos filhos).
Em seguida, temos o ilustre advogado e secretário-geral do Prontos!, o novo partido que conquistou os eleitores mais renitentes, Doutor Barnabé Desgraça.
Ao seu lado, Samuel Alfarrobeira, co-autor do podcast Dialécticas e Fracturas e jornalista com crónicas no semanário O Calhamaço.

Eu sou o Salvador Aflito e vamos então dar início à nossa conversa desta noite.
Para abrir o programa, escolhemos um assunto atualíssimo: a reforma da disciplina de Cidadania. Vamos fazer uma ronda rápida e começamos, como não podia deixar de ser, pelas senhoras.
Doutora Alucinada, a sua associação já tem uma posição a este respeito?

Alucinada (que veste saia e casaco verde-ervilha, uma blusa cor-de-rosa e vários colares de pérolas, de um dos quais pende uma cruz dourada; ajeita os óculos com aros cor-de-rosa) — Muito boa noite e muito obrigada pela oportunidade de contribuir para que a verdade venha, enfim, à tona.
Eu não sou propriamente Doutora — deixei a escola no sétimo ano e depois disso só estudei na escola da vida — mas, como é essa a escola em que mais e melhor se aprende, aceito o título.
Pois, a AFCC já se posicionou a respeito desta decisão que, em boa hora, o Governo tomou. Achamos muito bem que se acabe com a pouca-vergonha que ia por essas escolas, com exibições de filmes pornográficos uma vez por semana e leituras de porcarias indecentes escritas por esquerdistas sem Deus!

Pode acreditar, desde que vi uma série de vídeos no YouTube com crianças inocentes a brincar com um... um... ai, até tenho vergonha de dizer... um pénis, vá, em plástico verde... Ai, fiquei com o coração apertadinho! Já nem consigo entrar nos supermercados durante as campanhas do Regresso às Aulas, com medo do que vou encontrar na zona do material escolar!!! É uma imoralidade! E há estudos que comprovam que essas brincadeiras contribuem para que as crianças se tornem homossexuais, eu já li vários na internet!
Por isso, para mim foi um alívio quando soube que toda essa porcalhice ia ser retirada das escolas! Já apresentámos o nosso contributo, sugerindo a leitura semanal da Bíblia, porque as crianças precisam de ser educadas com mão firme — já lá diz o Antigo Testamento...

Samuel agita-se na cadeira e bebe um golo da sua caneca. Percebe-se que está mortinho por intervir.

Salvador — E passamos agora à Professora Maria da Castidade. Professora, diga-nos: qual é o sentir das escolas?

Maria — Boa noite. Portanto, nas escolas há muito tempo que se esperava por este passo. Esta questão da Cidadania é muito delicada, sobretudo com os alunos mais novos, porque as crianças não podem esperar ad aeternum por uma educação verdadeiramente espiritual.
Claro que eu sempre me recusei a pôr em prática essas sugestões indecentes que vinham, portanto, do Ministério no tempo do governo socialista — que Deus castigue!
Uma coisa é explicar às crianças que as meninas têm pipi e os meninos têm pilinha; outra coisa, portanto, completamente diferente e atentatória da inocência infantil, é mostrar filmes pornográficos! Est modus in rebus!

Samuel, impaciente, bebe mais um golo.
Trambolho limpa os óculos com um paninho especial com a bandeira nacional estampada.
Porcínio alça uma perna e solta um traque sonoro. Em seguida ri, bebe todo o conteúdo da sua caneca e limpa a boca à gravata.

Salvador (ainda com os olhos arregalados das manobras de Porcínio) — Doutor Barnabé, o Prontos! já tomou posição a este respeito?

Barnabé (olha diretamente para a câmara e pestaneja lentamente antes de começar) — Muito boa noite a todos. E sim, o Prontos! tem um comunicado a respeito deste assunto tão importante!
Nós sempre fomos contra a apologia do sexo desenfreado que se fazia nestas aulas, fruto, sem dúvida, da nefasta influência dessa estrangeirada herege que nos anda a invadir.Felizmente, agora, que o Prontos! é a segunda força política, já temos massa crítica para exercer alguma boa influência na governação!
Opróbio! Opróbio! essas aulas em que queriam ensinar as nossas crianças a usar preservativos e a tomar a pílula desde os seis anos! Opróbio!

Porcínio (entre dentes) — Micróbio! (Arrota)

Salvador — Gostava agora de dar a palavra à imprensa. Samuel, como aprecia estas opiniões?

Samuel (que veste t-shirt branca sob uma camisa de ganga) — Boa noite.
Bom, quero começar por desmontar as insinuações absurdas e completamente infundadas que aqui foram feitas sobre filmes pornográficos passados durante as aulas ou incentivo ao uso de contracetivos por crianças de seis anos.
Nenhuma dessas coisas corresponde à verdade. O Calhamaço fez vários inquéritos em escolas de todo o país, num protocolo com o Ministério da Educação, e pudemos verificar que a informação dada às crianças a respeito de sexualidade era perfeitamente adequada a cada faixa etária, e centrava-se sobretudo no conhecimento do próprio corpo e na definição dos limites entre o aceitável e o intrusivo nas relações.
Por outro lado, valorizava-se a aceitação da diferença e a inclusão de todos. E quanto ao vídeo que a S’Dona Alucinada diz que viu, eu também o vi, era um jogo em que se simulava uma ida ao supermercado e o suposto pénis era uma curgete de plástico. Talvez a S’Dona Alucinada devesse atualizar a graduação dos óculos...
É vergonhoso que pessoas como o Barnabé — que tem uma posição de destaque — ou as duas senhoras que já falaram, se prestem a espalhar inverdades! Bem dizia Rosa Luxemburgo “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. “

Levanta-se algum burburinho no estúdio, com Alucinada a resmungar de forma audível: “Ora essa! Então eu não vi no Facebook?!”, Maria a benzer-se, e Barnabé a dizer “Opróbio! Opróbio!
Salvador pede calma, olha disfarçadamente para o relógio e acaba por levantar um pouco a voz:

Salvador (alto) — Vamos continuar, sim? Vá, com calma, por favor! (Retoma o tom de voz normal)
Porcínio, como deputado que veio das bases, qual lhe parece ser o sentir do homem e da mulher comum em relação a estas alterações ao programa da disciplina?

Porcínio (entalado numa gravata de riscas verdes e vermelhas, dá a impressão de ir explodir a qualquer momento) — Eu… pois eu… eu cá acho... acho que isto é só poucas-vergonhas! Olhe… isto é tudo… é dos imigrantes, são aos milhões por todo o lado, certezamente que é uma invasão…. Continuem a trazer essa gente!.... Vai ser lindo! Olhe…. Mictório! Mictório! (solta um arroto)

Salvador (completamente baralhado e sem ter percebido nada) — Sim, sim, percebo… Doutor Guilherme, gostava de ter agora a opinião da Academia. Como é vista no ensino superior esta questão da Cidadania e esta nova reforma?

Guilherme — A opinião da Academia, concretamente, não sei. Os meus colegas não costumam partilhar as suas opiniões comigo — talvez por causa da cor da minha pele!
Mas posso dizer-lhe que, na minha opinião, esta coisa da Cidadania é mais uma prova da intrínseca maldade da esquerda. Veja a tentativa de envenenar as mentes infantis com carradas de sexo. Sim, até manuais de masturbação e vales de desconto para caixas de preservativos andam a ser distribuídos nas escolas, pagos pelo contribuinte! Ora, diz Lavoisier que na natureza tudo se transforma, e é assim que a esquerda neste país quer transformar crianças inocentes e puras em pequenos monstros de depravação.
Ah, é bem verdade que o esquerdismo é uma doença mental!

Barnabé — Opróbio!
Porcínio — Micróbio!
Alucinada — Essa é que é uma grande verdade!
Maria (benzendo-se repetidamente)Ave Maria, gratia plena…

Salvador olha em volta, como se pedisse ajuda. Desesperado, fecha os olhos e respira profundamente três vezes, antes de pedir, levantando a voz:

Salvador — Vamos com calma, sim? Com calma!
(Os convidados serenam um pouco, embora Porcínio continue a resmungar “Micróbio!” e Alucinada, debruçada sobre Guilherme, garanta que viu no YouTube crianças num infantário a brincar com preservativos coloridos cheios de água.)
Falta-nos só a voz, sempre sensata, de Julião Trambolho. Julião, o que se lhe oferece dizer a este respeito?

Julião (depois de pigarrear para aclarar a voz) — Eu sei que não costumam levar-me a sério, mas o que temos todos de lembrar é que é da escola que levamos a bagagem para a vida. Isto é essencial! Ora, pergunto eu, quantos entre os portugueses, sim quantos é que querem ver os seus filhos embarcar na vida com uma mala cheia de preservativos e filmes pornográficos?
Essa é que é essa! Essa é que é a pergunta que ninguém tem a coragem de fazer...

Barnabé — Opróbio!
Alucinada — Ai, eu não diria melhor!
Maria (de olhos arregalados)E pluribus unum!
PorcínioAntibiótico!

Trambolho sorri, vitorioso.
Samuel resmoneia, de maneira audível: “Mas que grande imbecil!”
Alucinada levanta-se para ir pedir um autógrafo a Trambolho e convidá-lo para dar uma palestra aos associados da AFCC.
Porcínio solta um traque particularmente sonoro e sai a correr à procura da casa de banho.
Barnabé, percebendo que está a ser filmado em grande plano, sorri e pestaneja.

Salvador, atarantado, pede calma, suplica, mas tudo é inútil, ninguém lhe liga. Alucinada e Trambolho trocam números de telefone e endereços de e-mail. De longe, chegam os urros e grunhidos de Porcínio, fechado na casa de banho. Barnabé precipita-se, todo sorridente, para ajudar Maria a levantar-se, e fica a conversar com ela, que parece encantada com a atenção. Samuel toma notas num bloco e consulta o telemóvel. Salvador respira fundo, faz mais uns apelos à calma que ninguém ouve — e acaba por assumir a derrota.

Salvador (contendo a custo as lágrimas) — E assim chegamos ao fim deste primeiro programa. Não era bem isto que ensaiámos..., mas foi o que conseguimos. Por hoje é tudo. Daqui para a frente... só pode melhorar. Esperemos. Só me resta desejar uma boa noite.
Até para a semana…

11
Ago25

Novas Conversas com Coisos - jornalistas e moderador

Alface do Campo

Breves notas biográficas dos dois jornalistas permanentes e do moderador das NCCC.

Julião Marco Trambolho, rapaz da direita liberal, pai de oito filhos, que se tornou conhecido por ter pronunciado o discurso de abertura do Campeonato Nacional de Jogo do Galo em 2012.

Filho de um industrial de chapéus de feltro, cujo negócio em decadência foi salvo pelo 25 de Abril, quando começou a produzir boinas para os revolucionários de fresca data e depois se reconverteu para o artesanato em feltro com o advento do turismo. Julião, filho único, foi educado num colégio militar pois o pai acreditava nas virtudes da disciplina. Graças a uma bolsa da Gulbenkian, licenciou-se em Gestão em Newark, Texas (embora ainda hoje esteja convencido de que estudou no Massachusetts e estranhe sempre, em conversa, nunca ter visto o mar nem conhecido ninguém da numerosa comunidade portuguesa) com equivalência em Teologia aplicada à Fiscalidade.

Achando os lugares que se lhe ofereciam na sua área muito áridos e sem oportunidade de dar largas à sua veia criativa, começou a colaborar com revistas de economia e a escrever pequenas resenhas económicas em jornais.

Casou com a sua namorada de juventude, hoje dentista.

Em 2012, quando ainda tinha apenas dois filhos, foi convidado para fazer o discurso de abertura do Campeonato Nacional de Jogo do Galo, em substituição de Cristiano Ronaldo, que estava afónico. Foi nessa ocasião que pronunciou a frase, agora histórica: "É entre o Xis e o Zero que cabe toda a vida!"

A partir daí, tornou-se presença quase obrigatória em programas de comentário e começou a colaborar como colunista no jornal "O Valor Nacional" onde a sua crónica “Portugal precisa de menos luxúria e mais couves” se impôs como um clássico, tendo já sido objeto de uma dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação.

Reclama-se da "direita civilizada e liberal". Baixote e já a ganhar uma barriguinha, o seu sorriso fixo e os olhinhos piscos por detrás dos óculos de fundo de copo-de-três dão- lhe um toque um pouco caricato, que ele usa a seu favor, começando muitas vezes as suas declarações mais polémicas por "Eu sei que ninguém me leva a sério, mas..."

Samuel Alfarrobeira, esquerdalho impenitente, como ele próprio se descreve, nasceu para a participação cívica e política aos 20 anos, quando foi candidato à presidência da associação de estudantes da Faculdade de Letras de Coimbra. Foi derrotado por uma lista anarquista e costuma contar, em almoçaradas com amigos, entre gargalhadas, que a lista vencedora se dissolveu no próprio dia da eleição. “Claro que acabei por ficar eu e a minha lista, que tínhamos ficado em segundo lugar, mas pelo menos ainda falávamos uns com os outros, não é?” e completa sempre com “Eu até gosto dos anarquistas, pá, são malta porreira, mas muito sectária! E dispersam-se muito. Gente boa, mas com pouco fundo!”

Filho de um casal cordialmente desavindo da burguesia intelectual lisboeta, cresceu numa casa frequentada por artistas e escritores, aprendeu a ler no “Diário de Lisboa” e na adolescência, já vivida no pós 25 de Abril juntou-se à Juventude Comunista. Foi evoluindo politicamente até se aproximar da esquerda moderna e plural, mas manteve sempre resquícios da austeridade comunista – uma certa frugalidade militante e o gosto por debates infindáveis sobre moções com quinze alíneas.

A ida para Coimbra foi, ao mesmo tempo, um rasgo de independência e uma missão: ia trazer para a modernidade aquela Academia cheia de tiques tão antigos que já eram quase arqueológicos.

Embora fosse bom aluno, a política, e logo a seguir o amor, entretanto descoberto, pelo jornalismo, fizeram-no deixar a licenciatura por terminar.

Samuel tem uma voz profunda e agradável e uma prosódia escorreita. A sua barba curta e cerrada e as sobrancelhas escuras e espessas enquadram um rosto sobre o redondo, que um sorriso agradável, e até um pouco malandro, ilumina de vez em quando.

É sempre muito sério, mesmo quando conta piadas, e tem sempre um comentário a fazer, seja qual for o assunto, pois dá ideia de saber de tudo um pouco, embora por vezes esse pouco seja mesmo muito pouco, quase nada.

Gosta de esmaltar o discurso com citações inesperadas como “Ouvi dizer que o mundo acaba amanhã/E eu tinha tantos planos pra depois”, de uma canção dos Ornatos Violeta, que usa quando se começa a discutir prazos na Justiça em Portugal ou nas obras públicas, ou “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.” de Rosa Luxemburgo, quando se lamenta a fraca participação dos portugueses na política.

Não tem a mínima paciência para o seu colega JM Trambolho, mas parece estar condenado a participar sempre em painéis onde Trambolho também está.

É presença regular no podcast “Dialécticas e Fracturas”, onde se orgulha de “não simplificar para agradar, porque nem sempre o que é simplificado fica efetivamente simples”.

Salvador Aflito tem o apelido perfeito. É bom rapaz, cheio de boa vontade, é correto e cumpridor, mas, por acaso ou malapata, acaba sempre em situações embaraçosas, perigosas ou, no mínimo, estranhas.

Natural do Barreiro, filho de um operário metalúrgico e de uma costureira, sentiu desde miúdo o misterioso apelo do palco. Aos 15 anos fez o seu primeiro curso de Teatro e o bichinho, que já estava latente desde que, em miúdo, representava todos os papéis dos livros de quadradinhos do Tio Patinhas frente ao espelho do guarda fatos dos pais, floresceu forte e viçoso.

Como o rapaz era jeitoso, alto e elegante, e tinha uma belíssima voz, os pais apoiaram-no nesta vocação. Inscreveu-se num Curso Profissional de Artes Cénicas que terminou com boas notas. Como Prova de Aptidão Profissional, a turma encenou o Auto da Índia e Salvador foi o melhor Juan de Zamora que aquela escola tinha visto, apesar de, num momento romântico, as calças lhe terem caído e ter ficado em boxers cor de laranja com pinguins em frente da plateia.

A partir daí, nunca esteve muito tempo sem trabalhar, mas o azar pareceu persegui-lo: arranjou um pequeno papel numa peça no Teatro Experimental de Cascais e o ator principal, no entusiasmo da representação, pregou-lhe um valente par de bofetadas. A coisa correu tão bem, que o encenador resolveu incluir as bofetadas verdadeiras na peça e, durante um mês, o pobre Salvador foi esbofeteado todas as noites.

Em seguida, teve um papel numa telenovela mas a sua personagem era míope e ele, sempre cumpridor e zeloso, levou o papel tão a sério que esbarrava frequentemente nos candeeiros da rua e nos sinais de trânsito. Passou seis meses cheio de mazelas e nódoas negras.

Depois, conseguiu um papel numa série de Televisão espanhola, passada num hospital, onde a sua personagem sofreu um grave acidente no primeiro episódio, e passou o resto do tempo enrolado em ligaduras e sem dizer nada além de uns ruídos roufenhos.

Quando viu o anúncio do casting para apresentar noticiários televisivos, lá foi – sem grandes esperanças, diga-se – mas acabou por ser admitido para um estágio na RTP2, onde a sua boa voz e o seu treino teatral o ajudaram a manter-se. Já lá estava há quase dois anos quando, num casting interno para um novo programa de infotainment, Novas Conversas com Coisos, reedição de um outro que tinha riscado como um cometa o céu do comentário político vinte anos antes, e sido bruscamente interrompido por tricas internas, e por um equívoco que Salvador começou por considerar feliz, alguém fez constar que ele era sobrinho de uma pessoa influente. Claro que foi o escolhido. Mal ele sabia o que o esperava...

 

 

 

07
Ago25

Novas Conversas com Coisos - Painel residente

Alface do Campo

(Post longo)

Maria da Castidade Perpétua, Licenciada em Educação das Bases, com Mestrado em Bases de Tachos.

Jovem na casa dos 20 e muitos/30 e poucos. Bonita, de estatura média, usa o cabelo comprido atado na nuca e veste normalmente túnica cinzenta e camisa branca, que lhe dão um ar de jovem freira à paisana. Em ocasiões informais costuma vestir calças de ganga e t-shirt cor de rosa.

É professora do primeiro ciclo numa aldeia minhota, Santa Donzélia dos Silvados, e já conseguiu que a escola fizesse um protocolo com a diocese para os alunos terem catequese nas Atividades Extra Curriculares, incluindo os dois alunos muçulmanos, que são demasiado bem educados para recusar, o miúdo nepalês, budista, que até acha graça e as três alunas ucranianas que são Ortodoxas, mas aproveitam para praticar o seu português.

É boazinha e compreensiva, e até é boa professora. Na sua sala de aula reina um bom ambiente, embora dois ou três dos alunos mais pequenos costumem adormecer durante a recitação das regras da gramática. Nunca faltou, a não ser uma vez em que ficou três dias de baixa com um ataque de urticária, quando um aluno desenhou um arco íris.

Em debate, é muito minuciosa, sendo capaz de discutir um pormenor durante muito tempo. A sua expressão preferida é ad aeternum, embora também diga muitas vezes "portanto". Abomina as pedagogias modernas e até tem uma pequena palmatória de madeira, pintada de cor de rosa, só para incutir nas crianças o amor pela disciplina, pois nunca a usou. O seu castigo mais comum é mandar o aluno prevaricador recitar o Pai Nosso em latim.

A sua família, os Perpétua, tornou-se conhecida há uns sete ou oito anos quando os pais proibiram o irmão mais novo de assistir às aulas de história durante a unidade didática sobre a Revolução Francesa, invocando objeção de consciência, e o caso ainda se arrasta pelos Tribunais, apesar de o rapaz já estar na Faculdade.

Porcínio Galinha, deputado analfabeto do Prontos! cuja principal intervenção parlamentar consiste em soltar traques e arrotos estrondosos quando fala um deputado de esquerda.

Porcínio tem uma aparência física infeliz. Lembra um javali que se tivesse submetido a uma depilação laser mal sucedida, num salão de beleza de vão de escada, vestido com um fato da secção de tamanhos grandes da C&A. Como, apesar de ter o pescoço largo, insiste em usar camisa e gravata, dá permanentemente a ideia de que está prestes a rebentar.

É de uma família de classe média originária da Beira, mas os pais vieram para Lisboa depois de casar. O pai era taxista e reformou-se quando o filho entrou como deputado na AR.

Em pequeno, no bairro onde cresceu, chamavam-lhe "o porco-em-pé", e ele refugiava-se, muito choroso, junto da mãe. Ainda frequentou a escola primária, mas como aos 12 anos não tinha passado da terceira classe e ainda não conseguia ler, os pais concordaram que era inútil o rapaz continuar os estudos e puseram-no como aprendiz numa padaria, de onde foi despedido aos 14 anos porque largava pêlos por toda a parte.

Juntou-se então a um grupo de forcados, mas em breve foi posto de parte, porque os colegas se queixavam de que era frequente ele soltar traques quando estavam todos em molhada na cabeça do toiro.

Apesar disso, acabou por conseguir trabalho como Relações Públicas numa ganadaria, e foi aí que despertou para a política.

Na Assembleia, tornou-se famoso não só por soltar gases e arrotos extremamente sonoros durante as intervenções de deputados dos outros partidos, como por comer alarvemente no Restaurante e reclamar dos preços. Tem geralmente um cigarro atrás de uma orelha e um palito atrás da outra e é frequente confundir os dois. Poucos se podem gabar de lhe ter ouvido dizer uma frase completa.

Barnabé Desgraça, advogado de divórcios de grande sucesso e secretário geral do novo partido Prontos!

Barnabé é um homem na casa dos 40. Bem parecido, cultiva um estilo desleixado chic, com barba de três dias cuidadosamente mantida,  tez bronzeada, fatos clássicos e camisa imaculada, mas gravatas de tons inesperados, como rosa salmão ou azul alfazema. Tem muito charme e serve-se disso a seu favor.

De origem modesta, chegou a frequentar o seminário onde adquiriu uma sólida formação clássica e manhas de padreca. Acabou por cursar Direito, onde se formou com altas classificações e uma tese de Mestrado sobre os Tribunais Plenários do Estado Novo, escrita propositadamente para impressionar um catedrático comunista, porque Barnabé é muito inteligente.

Trabalhou durante alguns anos num escritório de advogados especializado em divórcios e a sua "Magnum Opus" é um divórcio em que conseguiu provar que o marido, cirurgião plástico milionário, não tinha um único cêntimo e ainda obteve a condenação da mulher, enfermeira, a pagar-lhe uma pensão de alimentos. Costuma gabar-se disso entre amigos.

Fundou o Prontos! a meias com um amigo, publicitário, que, na primeira ocasião, fez expulsar por "ideias imorais", não sem antes se ter assegurado de que os slogans e planos de marketing do partido estavam bem feitos. Ao início, o Prontos! atacava sobretudo as políticas de esquerda mas, num golpe de sorte, Barnabé percebeu que atacar os imigrantes dava muito mais votos e agora invectiva constantemente "essa gentalha estrangeira que vem roubar os nossos empregos e violar as nossas filhas". A sua exclamação preferida é "Opróbrio!", que é repetida pelos seus adeptos menos cultos em variações muito divertidas.

Guilherme Riacho e Meio, Historiador e doutorado com uma tese sobre "Racismo Pretérito e Malevolência Esquerdalha".

Apesar de ter apenas 1,60m, está sempre em forma e frequenta diariamente o ginásio perto de casa, para estar "sempre preparado para a luta, quando a guerra cultural começar". Uma forte crise de infeção nas adenóides, em criança, deixou-o com uma voz um pouco nasalada. Os amigos chamam-lhe "o fanhoso", o que o deixa furioso, e os alunos (porque Guilherme já foi professor antes de se dedicar a tempo inteiro à investigação e à política) chamavam-lhe "o poguessemplo", grafia fonética da forma como a expressão "por exemplo" soa na voz dele.

Bisneto de uma mulher negra, tem um tom de pele fortemente bronzeado.

Guilherme tem opiniões polémicas e não se envergonha delas. Sustenta, entre outras coisas igualmente discutíveis, que com o final da Guerra Civil Americana e a abolição da escravatura no Brasil, o racismo terminou. É aliás esse um dos temas centrais da sua tese de doutoramento. No entanto, sempre que alguém discorda dele, o seu primeiro argumento de ataque é "será por causa da cor da minha pele que diz isso?" Considera também que as pessoas de esquerda são inerentemente maldosas e propensas ao deboche. Entre as suas expressões preferidas encontram-se "a esquerda radical sádica" ou "a política esquerdalha do chicote".

E extremamente chato em discussão, repisando o mesmo assunto até exaurir o adversário. Aliás, só conseguiu, até hoje, vencer debates por cansaço do interlocutor.

Tem muitos admiradores no novo partido Prontos!, a que ainda não aderiu porque quer, como ele diz "manter-se equidistante".

Alucinada da Pipoca Frita, senhora que se licenciou pelo Facebook e presidenta da Associação das Famílias em Crescimento Contínuo.

Alucinada tem este nome porque o funcionário do registo civil tinha almoçado muito bem, acompanhado com vários copos de vinho branco fresquinho e, ao tentar escrever "Alcinda", foi o que lhe saiu da inspirada caneta. Como já estava escrito, assim ficou...

A sua história de vida é curiosa. Desde pequena sempre teve um incrível talento para imitar tudo o que via fazer. Aos 8 anos, depois de ler A Bela Adormecida, começou a picar o dedo com um alfinete para adormecer mais depressa. Continuou a ter insónias, mas arranjou uma tal infeção no dedo, que a unha caiu e voltou a nascer com um feitio esquisito. Animada por este sucesso, aos 13 anos e meio, tendo visto numa telenovela uma jovem fugir com o namorado, convenceu um vizinho, dez anos mais velho, feio como a noite dos trovões e que já se tinha resignado a ficar solteiro, a fugir com ela. Quando foram apanhados, em Sanfins do Douro, pelos pais de Alucinada, gente muito conservadora, foram obrigados a casar. Tem sido um casamento feliz, até porque o marido tem um medo dela que se pela e faz tudo o que ela manda. Têm 5 filhos que saíram de casa o mais cedo possível para deixarem de estar sob as ordens da mãe.

Alucinada absorveu os valores conservadores da família, mas ao converter-se ao cristianismo evangélico, acrescentou-lhes um twist especial.

Há uns 5 ou 6 anos, Alucinada descobriu a internet e ficou viciada em vídeos sobre teorias da conspiração, que imediatamente integrou seu quadro mental, com um fervor religioso.

Apesar do seu aspeto de inofensiva senhora gorducha, de meia idade, cabelo grisalho e maquilhagem discreta, é torrencial a falar dos seus maiores interesses (A conspiração homossexual pedófila para dominar o mundo, Os democratas canibais dos Estados Unidos e A promoção do aborto por George Soros e Bill Clinton) com muitos gestos veementes, muito vocabulário brasileiro adquirido no YouTube e chuvas de perdigotos. Foi a criadora e é a atual Presidenta da Associação de Famílias em Crescimento Contínuo, cujo logotipo, uma casa com uma cabeça de mulher a sair por uma janela e o slogan "Cabe sempre mais um" foi desenhado por ela.

04
Ago25

CONTRIBUTOS PARA UMA ENCICLOPÉDIA DA COISOLOGIA

Alface do Campo

(Versão revista, ampliada e melhorada por 20 anos de experiência da autora)

 

UM O Coiso é uma figura que abunda por toda a parte. Pode ser homem ou mulher (mas sempre uma das duas coisas, porque o Coiso não gosta cá de modernices!), é sempre conservador e quando o Criador estava a distribuir os cérebros não apanhou grande coisa (e, se apanhou, não usa muito para não estragar). Isso não o impede de ter opinião sobre tudo e um par de botas.

 

DOIS Para o Coiso que é Coiso impõe-se um fundamental artigo de fé: amor é amor e sexo é «uma porcaria». Assim, o Coiso sente amor pelos filhos (enquanto heterossexuais com provas dadas, está visto!), por Deus, pela própria mãe e, em casos raros, pela legítima esposa. Claro que também assume o seu lado de «porco», ou pelo menos de «leitão», vá, e faz a sua dose de «porcarias» com umas «gajas» a quem, de resto, considera «umas porcas». O lado reprodutivo inclui, como não podia deixar de ser, camisas de noite em contraplacado, com um buraco no sítio certo, devidamente enquadrado por crucifixos e outra parafernália religiosa. É um acto sacramental e sacrificial, necessário à continuação da espécie. E é porque a sua atividade sexual não tem grande interesse, que o Coiso se preocupa tanto com a atividade sexual dos outros.

 

TRÊS Há que distinguir vulgar «porco» (o Coiso acima descrito, que se purifica da «porcaria» na missinha dominical, confissão periódica e penitência) do Porcalhão. Este último é um indivíduo desclassificado, provavelmente homossexual, esquerdista convicto e que aborta à média de umas duas vezes por semana, prática nefanda provocada pelos excessos a que se dedica nas orgias que frequenta e que estão pejadas de gente desclassificada do mesmo sexo, defensores da eutanásia e de outros horrores.

 

QUATRO O Coiso é homem (ou mulher) de valores. Acredita na autoridade, na estabilidade, na lealdade e noutras coisas acabadas em «ade» e pespegadas em cartazes azuis à beira das estradas. Acredita em Deus, na Pátria e na Família, sobretudo se for numerosa. O Porcalhão, pelo contrário, acredita nesse mito chamado Democracia, ou diz que acredita, porque se sabe de fonte segura que o Porcalhão é incréu de pai e mãe.

 

CINCO O Coiso é Católico, Apostólico e Romano. Ou Evangélico. Ou outra coisa qualquer. O Coiso é um homem de fé, ao contrário do Porcalhão que é, inevitavelmente um jacobino trotskista, radical e situado lá para a esquerda do Partido Comu... Comunis..., bem dessa coisa, em suma. Diz ele que a sua fé é no homem, mas o Coiso sabe bem o que ele quer do homem, o grande Porcalhão!

 

SEIS O Coiso foi chamado por Deus para salvar a humanidade, queira a humanidade ou não. É para cumprir essa missão divina que o Coiso procura furar em busca de poder e de influência. É essa missão que faz do Coiso um grande descobridor de vocações e um implacável denunciante das vis tentativas de doutrinação levadas a cabo pela Esquerdalha (nome artístico do conjunto dos Porcalhões). É essa missão que leva o Coiso às redes sociais e aos meios de comunicação, contrariado e com sacrifício, porque, por obrigação religiosa, o Coiso devia cultivar o recato e discrição. Mas pronto, é por uma boa causa, diz ele nas suas orações.

 

NOTA FINAL E AVISO Há Coisos estúpidos e espertos, burros como maçanetas de porta e inteligentes como raposas, há Coisos que têm uma relação complicada com a Ortografia e com a Sintaxe e Coisos que escrevem com elegância clássica. Há Coisos brutos como javalis bêbados e Coisos educados, encantadores e amáveis como príncipes de novela. Há Coisos pobres como Job e ricos como Cresus. É a coisice que os une e a coisice é, ao mesmo tempo, um estado de alma e uma vocação. Ninguém nasce Coiso, é um processo.

03
Ago25

Mais vale levar as coisas a rir do que a chorar

Alface do Campo

Aqui há 20 anos, numa fase de grande criatividade, escrevi umas entrevistas satíricas, "Conversas com Coisos", que publiquei no blog que tinha na altura (e que já não existe). Os 5 ou 6 leitores que tinha na altura acharam piada e tudo culminou numa letra para um fado que teve imenso sucesso nesse pequeno círculo. Escusado será dizer que me diverti muito a escrever tudo aquilo.

Passados 20 anos, sinto de novo o bicharoco da sátira a picar. Por isso, e como tristezas não mudam a composição da AR e mais vale rir do que chorar, estou a pensar ir publicando aqui as "Novas Conversas com Coisos", à medida que estiverem escritas e revistas. Claro que qualquer semelhança de figuras e/ou situações ali retratadas com a realidade é uma desgraçada coincidência pela qual não sou responsável.

E vou começar pelas publicações preparatórias: "O que é um Coiso" e "Breves notas biográficas dos membros do painel residente das NCCC e dos jornalistas/comentadores/moderador".

Se alguém ler, espero que se divirta!😂

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