As mariposas da argumentação
Tive, no Twitter, uma desconversa que, apesar de breve, me moeu a cabeça. Partiu de uma acusação de que alguém defenderia que ganhássemos todos o mesmo, independentemente da responsabilidade associada a cada profissão, o que, no dizer do acusador, equivaleria a miséria para todos.
O argumento de base (a responsabilidade) já é bizantino que chegue. A responsabilidade associada a cada actividade profissional é uma questão bastante subjectiva. Um futebolista de primeira água tem mais responsabilidade do que um cirurgião? Uma empregada de limpeza tem menos responsabilidade do que um gestor? É que o mundo precisa mais de cirurgiões do que de futebolistas e é mais imediatamente útil uma empregada de limpeza do que um gestor, mas um futebolista superstar ganha mais num mês do que um cirurgião em dez anos e um gestor, se for daqueles bem pagos, ganha mais num ano em bónus do que uma empregada de limpeza durante toda a vida. E foi isto que respondi.
A resposta foi que, se todos ganhassem o mesmo, não haveria incentivo para fazer um trabalho bem feito, o que é um argumento curioso (e parvo) além de que o inicial argumento da “responsabilidade” já foi com os porcos. Se regressarmos à empregada de limpeza versus o gestor, e se o valor do salário está diretamente ligado à perfeição do trabalho feito, então as empregadas de limpeza devem trabalhar todas mal, porque ganham uma merda, e os gestores devem ser epítome da perfeição laboral divina, porque são regiamente pagos.
O contra argumento foi que (além de eu ser comunista, que nem sei a que propósito veio) uma boa empregada de limpeza ganha mais do que uma má empregada de limpeza e um mau gestor menos do que um bom gestor. Isto, claro, para além de ter logo descartado o argumento do “diferencial do salário como incentivo ao bom desempenho da profissão”, continua a não responder à questão de fundo: o pior dos gestores ganha muito mais do que a melhor empregada de limpeza. A este saltitar de linha de argumentação em linha de argumentação eu chamo desconversar e desisti.
Aqui, na minha casota, completo o raciocínio que se ia perdendo na desconversa: não vejo grande problema em ganharmos todos o mesmo ou em as diferenças salariais serem mínimas desde que toda a gente ganhe o suficiente para viver de forma digna e haja uma rede social universal que nos garanta proteção contra as más surpresas da vida. Dormiria bem mais descansada se o mundo assim fosse. O que me tira o sono é saber que há muitos milhões de pessoas em todo o mundo que trabalham a tempo inteiro, às vezes até em mais do que um emprego, e não conseguem pagar a comida e a casa. Isso é que é chocante.
